O seu jogo preferido da infância diz muito sobre você.
Podia ser um teste do Buzzfeed, mas é o jeito que resolvi começar esta carta. O meu jogo preferido era o Jogo da Vida. Um tabuleiro colorido cheio de desenhos onde eu podia dirigir um carro rosa, me casar, ter vários filhos e acumular dinheiro até chegar numa mansão com jardim e um lago de cisnes. Esse era o objetivo máximo do jogo: ver quem chega no fim da vida com mais dinheiro.
Ao longo da estrada, a roleta definia em que casas parar, e o que fazer da vida: uma sucessão de perdas e ganhos. Seu carro quebrou, pague 2 mil. Sua casa inundou, receba 10 mil – se tiver seguro de casa. Por mais que o destino sempre fosse o mesmo, era raro atravessar o tabuleiro repetindo sempre as mesmas casas. Algumas eram sempre desejadas, como o dia do pagamento ou a casa em que você ganha na loteria. Particularmente eu gostava da casa em que você escrevia um best-seller e ganhava uma bolada. Outras eram temidas, como herdar os 50 gatos de titia (uma baita despesa), ou ter que pagar a conta do dentista (cuidar de dentes não sai barato nem na brincadeira).
No Jogo da Vida, o seu salário era definido pela profissão que a roleta determinava logo no início do jogo e não havia muitas opções: médico, jornalista, advogado, professor, físico (tudo no masculino) e, se desse azar, só um diploma universitário, ganhando menos que todo mundo só por não ter uma carreira. É claro que todo mundo queria ser médico ou advogado, que recebiam os melhores salários. E como a formação acontecia no início da brincadeira (o jogo da vida só começa quando se vira adulto), definia o seu futuro na corrida. Afinal, quem começa ganhando 50 mil certamente tem mais chances de acumular uma fortuna maior do que quem começa ganhando 16 mil. O juízo final onde contávamos as notas coloridas e descobríamos quem era mais rico muitas vezes se definia na primeira rodada. Quem começava ganhando pouco tinha era que contar com a sorte de receber uma herança ou ganhar um Nobel (e torcer pelo azar dos outros). E a sorte era tudo o que se tinha no Jogo da Vida.
Quando eu já estava pensando no vestibular, torcia para que a roleta do jogo me levasse à profissão de jornalista, mesmo sabendo que ganharia menos do que minha prima que almejava sempre a casa da medicina. Era um ensaio para a vida real. O importante não era ganhar tanto, mas ficar contente com a minha escolha – mesmo que no Jogo da Vida a gente nunca trabalhasse, só passeasse de carro por uma estrada sinuosa tendo filhos pelo caminho.
O casamento era o segundo estágio após a formação. Impossível avançar no jogo da vida sem se casar, era um pedágio obrigatório. Ter filhos era obra do acaso, mas uma condição almejada, pois cada criança rendia 2 mil ao nascer – um ótimo negócio no Jogo da Vida (nada de creche ou escola particular para se preocupar).
O máximo de progressismo que o jogo permitia era que os pinos rosas dirigissem os carros, coisa que eu sempre fazia com o meu (embora a Luiza de carne e osso ainda não saiba dirigir); uma das minhas primas sempre botava o marido para dirigir depois de casar. Importante notar que naquela época só existiam pinos rosas e azuis (para a alegria das Damares do mundo) e não se ousava casar com um pino da mesma cor.

Por fim, não havia muita história por trás da escolha do noivo ou noiva. Era só mais um pino no banco do passageiro. Se vocês se conheceram na faculdade, no emprego ou no posto de gasolina, para o jogo da vida não importava. Importava se casar, ganhar dinheiro e avançar.
Para onde você está caminhando?
Uma pergunta que meu avô me faz sempre que conversamos é se estou “caminhando”. Às vezes ele quer saber se tenho me exercitado mesmo, outras vezes ele quer saber se minha vida está evoluindo, como uma escola de samba na avenida. Sempre respondo que sim, estou caminhando. Conto dos meus trabalhos, das minhas conquistas, dos meus passeios à beira-mar.
Uma pergunta que nunca fiz é para onde ele pensa que as coisas devem caminhar. Ou como ele pensa que devo caminhar. Mas desconfio que a direção seja em frente. De preferência, com algumas conquistas pelo caminho. Por exemplo, a notícia de eu ter entrado no mestrado foi recebida com entusiasmo – assim como as publicações dos livros de poesia, é importante ressaltar.
O recado é: o carrinho não pode ficar parado no tabuleiro, nem voltar algumas casas, tem sempre que avançar – de preferência para as casas que trazem méritos e ganhos financeiros. Desconfio que pintar um quadro, beber com os amigos, jogar The Sims ou ir a um bloco de carnaval não avance muitas casas no jogo, por exemplo. Mas são esses desvios que fazem toda a jornada valer a pena.
Juízo Final
O fim do Jogo da Vida, como antecipado, resumia-se a contar fortunas. Pouco importava se você escalou o Everest, se viajou num navio de cruzeiro, se pediu empréstimo ao banco ou se sua casa pegou fogo. Vencia quem tivesse mais capital acumulado.
O Jogo da Vida era longo e arrastado, ao longo dos anos ficava cada vez mais difícil convencer meus primos a jogarem comigo. Às vezes inventávamos nossas próprias regras, em que todas as profissões ganhavam 50 mil e bastava passar por uma casa de filhos para se ganhar um – e os presentes em dinheiro que eles rendiam, lógico.
Antes do Juízo Final há uma ponte e praticamente não há mais casas com consequências negativas, algumas casas até te fazem chegar mais rápido no destino. Chegar nessa ponte era saber que as aventuras chegavam ao fim, que as casas agora falariam apenas de aposentadoria, prêmios Nobel e de seguro e era só uma questão de números e rodadas para o jogo acabar. Não raro nos contentávamos em chegar à mansão com lago de cisnes, deixando de lado a contabilidade do juízo final e partindo para a próxima brincadeira.
Eu guardava as peças na caixa com uma sensação nostálgica. Por mais que a vida fosse uma corrida e a mansão com lago de cisnes nosso destino final, o mais divertido era sempre a jornada – e as pequenas histórias vividas ao longo daquele tabuleiro.
Qual era o seu jogo preferido da infância e como ele influenciou (ou não) a sua maneira de encarar a vida?
P.s. 1: Eu nunca tive o Jogo da Vida clássico. Minhas primas é que tinham. Sabendo da minha nostalgia, há uns anos, minha mãe me arrumou um Jogo da Vida dos anos 2000, mas o tabuleiro quase não tem ilustrações, ou histórias. Nunca consegui jogar.
P.s. 2: Não tenho fotos do Jogo da Vida, por isso fui caçar na internet. Assim me lembrei que o jogo é igualitário no começo, sim: um carro e 10 mil pra cada um e podia escolher entre o caminho universitário ou o caminho dos negócios. Mas estamos falando de Brasil anos 90-00: todo mundo escolhia a universidade.

P.s. 3: Esse texto não foi patrocinado pela Estrela.
Recomendações da semana
Para ler📚
Em 2012 o Leandro Borges já se indignava com a lógica financista do Jogo da Vida nesse texto.
Esse texto da Ana Elisa Ribeiro sobre a poesia contemporânea independente está muito bacana e de quebra tem uma resenha linda de Da costela do impossível, da Marcela Alves.
Paterson, William Carlos Williams. Círculo de Poemas, tradução de Ricardo Rizzo
Para ver 📺📽
Chicago (2002), Netflix. Vi pela primeira vez em 2024 e fiquei encantada com o enredo, as músicas, os figurinos.
Nyad (2023), Netflix. A Aline Valek amou e eu também curti muito o filme, a mensagem de nunca desistir embora pareça impossível, mas achei a Diana Nyad osso duro de roer (o que foi muito bom pra ela). O engraçado é ver as cenas reais da Nyad e da Bonnie nos créditos e constatar que a caracterização de Anette Benning e Jodie Foster ficou perfeita. Sem exageros.
Casa das Poetas
No próximo dia 20/02, às 20h, o clube Casa das Poetas vai receber a carioca Gabriele Rosa e seu livro Dias medidos em xícaras de café para um bate-papo com leitura de poemas. Online, grátis, só chegar. Inscreva-se aqui.
P.s. 4: a virose macetante me pegou e me deixou em frangalhos. O pós-carnaval foi todo de cama, xarope, e termômetro. Provas de um carnaval bem vivido. Mas aos poucos me recupero.
eu gostava muito de "jogo da vida", mas meu preferido era "detetive": coronel mostarda, sala de música, candelabro. adorava "war" e "banco imobiliário" também, mas eram jogos tão arrastados que nunca tinham fim.
Você desbloqueou uma memória de infância esquecida, mas tão gostosa que era a sensação de jogar o jogo da vida, que nostalgia 🤍🤍🤍