De uma coisa temos plena certeza: um dia não estaremos mais aqui. Seja como raça humana, seja como seres humanos, sabemos que temos prazo de validade. E, segundo algumas teorias e obras de ficção (pense em vampiros deprimidos ou mesmo na Barbie da Greta Gerwig) saber que a vida acaba é o que dá graça de vivê-la.
Ainda assim, a experiência de existir e fazer coisas pode ser tão prazerosa que não queremos que acabe. Quem nunca implorou para a mãe deixar brincar só mais um pouquinho no pátio da escola? Ou tentou converter a visita na casa da amiga em uma noite do pijama? Quem nunca terminou um namoro e se viu sem coragem de cortar os laços com a pessoa que um dia amou, tentando manter a convivência e confundindo as coisas no processo? Ou só enrolou meses para assistir ao último episódio ou temporada de uma série só para não admitir que acabou?
Esses são exemplos bem simples de como tentamos adiar as despedidas no dia a dia. Mas há quem tome decisões extremas para adiar o fim da vida. Como o bilionário que gasta 2 milhões de dólares por ano em tratamentos para rejuvenescer seu corpo e assim enganar a morte; ou os excêntricos que trocam o enterro tradicional pela criogenia na esperança de um dia a ciência evoluir a ponto de ressuscitar seus corpos. Sobre essa escolha que mais parece ficção científica, meu palpite é de que o mundo acaba antes de descobrirem como ressuscitar os mortos.
(Sobre o fim do mundo, tem esse episódio maravilhoso de Bobagens Imperdíveis):
Tenho ainda uma série de críticas à prática de congelar corpos para a posteridade: o investimento milionário em uma tecnologia com, até o momento, 0 chance de sucesso e 0 expectativa de retorno pro investidor – entre pagar a vida inteira pra ter seu corpo congelado pra talvez voltar à vida e apostar na Mega Sena toda semana, eu apostaria na Mega Sena; o gasto de energia para preservar esses corpos ad aeternum quando o planeta sofre as terríveis consequências do aquecimento global e o uso consciente de energia (limpa, de preferência) é fundamental para preservar a nossa existência como um todo; a vaidade de achar que seu corpinho é especial o bastante pra ser preservado e ganhar uma segunda chance; e algumas outras questões filosóficas que não são bem meu objetivo com esse texto, mas fique à vontade para me dizer o que pensa sobre isso nos comentários.
Despedidas são agridoces. Sabemos que vamos partir um dia, mas não saber o quando torna essa incômoda questão mais abstrata e mais fácil de ignorar. Só lembramos que vamos morrer em situações extremas: um acidente terrível, uma doença mais grave, um engasgo que parece fatal, um desastre climático, a morte de um ente querido. São eventos que fogem ao nosso controle e nos ajudam a lembrar que nossa existência é efêmera. Portanto, deve ser aproveitada.
Uma forma de driblar a efemeridade da vida é cuidar dela. Se alimentar bem, fazer exercícios, tomar sol (com protetor solar). Dormir cedo, fazer checkups regulares. Mas se divertir também, que ninguém é de ferro e só se vive uma vez (literalmente). Aliás, quer coisa melhor pra esquecer que vamos todos partir do que se perder por horas num videogame ou numa série de 20 temporadas?
Outra forma é deixar vestígios. Rastros de nossa existência.
Grandes líderes deixam monumentos, palácios, estátuas; gente rica deixa herança em forma de ações, empresas, mansões, obras de colecionador; pessoas comuns deixam fotografias, diários, relíquias de valor sentimental; artistas deixam sua arte: pinturas, esculturas, filmes, livros, peças de teatro, e um monte de cadernos rabiscados.
Volto sempre à frase de meu conterrâneo Ferreira Gullar: a arte existe porque a vida não basta. Para aqueles, como eu, que não se contentam com uma existência com início, meio e fim, criamos arte para viver, mas também para deixar um registro de nós para a posteridade. Acaba sendo um pouco como congelar o corpo após a morte, mas garanto que a arte é muito mais útil.
Só a Arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes — tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura.
Mas e a arte que se apaga? A arte que não sai das gavetas, ou que ganha o mundo para ser esquecida pouco depois? Será um grito no vazio, um desperdício de energia tão indesejado quanto o que alimenta as cápsulas de criogenia? Se em breve não estaremos mais aqui, qual o sentido de produzir tanta coisa, seja lixo ou arte, de que posteridade estamos falando quando nem mesmo o futuro é certo?
Não tenho respostas. Nem ouso jogar essa responsabilidade em você que me lê. Cada um faz o que pode para adiar a despedida dessa existência terrena – quem não é milionário só pode rezar e cuidar da saúde – ou anestesiar a certeza do fim com distrações bem-vindas: trabalho, viagem, leitura, jogos, ginástica, estudo, arte, relações humanas – tudo o que a gente busca para preencher nossas vidas.
Porque, no fim das contas, viver é aquilo que acontece entre nascer e morrer – e alguma coisa precisamos fazer nessa vida. Alguns constroem sarcófagos de gelo para hibernar, outros buscam curas milagrosas, outros ainda lançam foguetes para fugir desse planeta em chamas. A mim, só me resta mesmo escrever.
O título “Adiar a despedia” foi sussurrado no meu ouvido naquele estado híbrido entre desligar o despertador e voltar a dormir só mais 5 minutinhos. Comecei a escrever antes de fazer minhas tarefas mais urgentes, seguindo um fio imaginário que eu não sabia para onde me levaria e é com esse fio que deixo vocês. Espero que encontremos juntos a saída desse labirinto.
A segunda parte dessa carta será enviada no próximo domingo.
Despedidas literárias
“As despedidas”, de Carina Bacelar, ganhou o Prêmio Mozart Pereira Soares de Melhor Narrativa Curta. É um prêmio mais que merecido. Sua prosa poética em 5 partes acompanha mulheres em diferentes despedidas: da infância, do amor, da cidade, da solidão, do medo. Todas as personagens das 5 histórias (que podem ser a mesma mulher, se você quiser) têm uma relação intrínseca com o mar, e as palavras de Carina são como ondas que te arrastam e te afastam e te mantêm ali, hipnotizada.
também é autora da newsletter , onde escreve, de tempos em tempos, textos que me arrebatam sempre.Na véspera de começar a escrever esse texto, terminei de ler “Ainda estou partindo”, de Mariana Imbelloni. São poemas que tratam do cotidiano, dos hábitos domésticos. Preparar refeições, fazer faxina, receber pessoas em casa. No entanto, é uma escrita de despedida, porque essa casa que se cuida e em que se vive está sendo deixada. Mas não é fácil partir. Então a poeta adia a despedia largando a louça na pia, rememorando momentos em vez de pintar as paredes para entregar o apartamento, escrevendo poemas, com a mala aberta ali no canto do olho, esperando ser arrumada. Uma beleza de livro.
O que eu li essa semana
Newsletters, basicamente:
Esse texto da news da
não é da semana, mas acho que dialoga um pouco com esse ensaio de despedida. Na verdade, busquei no arquivo algum texto dela que disssse o que quero dizer e sinto que todos dialogam mais ou menos, então vai lá dar uma fuçada na se você ainda não é assinante.Os textos da
e da sobre o não-fim da crônica (aqui e aqui).O texto da semana da
me calou fundo. Fiquei tão reflexiva sobre o que falar e o que não falar, o que registrar e não registrar, que até excluí o aplicativo do X (o finado Twitter) do celular para exercitar o silêncio.Não que eu tenha conseguido.Essa linda carta da
sobre porque ela não escreve mais cartas enquanto escreve uma.Acho que a fala da
sobre testes bateu aqui meio do avesso e me fez adiar o envio dessa edição-teste em duas partes (quiçá três), mas felizmente a leitura carinhosa dela me deu ânimo para seguir com o envio – e a news da semana sobre insanidades virtuais também ta show.Esse texto sensível da
dá um bom panorama sobre inteligência artificial de um ponto de vista de programadora e artista.
Agenda
Quarta-feira, dia 23/08, às 21h, vou participar do Luau Literário online no perfil da Luciana Teixeira no Instagram. Dá uma passadinha pra ouvir uns poemas!
Oba! Que bom que enviou 🌷 também adoro as despê da Carina, esse livro mexeu comigo. Era rainha de adiar despedidas, mas descobri que não tenho mais tanto tempo assim, então o adeus não tem virado até logo. Beijo.
Lu, caramba! Se tivesse lido ontem teríamos conversado sobre o texto que comecei a escrever e parei, pq fala de outras formas que encontramos de imaginar que não somos finitos. Adorei muito tua carta ❤️