12/08/2023
Comecei um curso. É de expressões artísticas com ênfase em feminismos latino-americamos, no Sesc Niterói. As aulas se dão aos sábados de manhã. Quando recebi a confirmação da inscrição, quase me arrependi de comprometer minhas manhãs de sábado pelos próximos seis meses. Mas agora me vejo a cada semana ansiando pelo próximo encontro.
O curso, com mentoria de Tatiana Pequeno, tem vários módulos ministrados por diferentes facilitadoras. No dia 05/08, começamos o módulo com Luisa Espindula A escrita fareja o rastro, sobre escrita de diários. Estamos nos debruçando sobre a escrita íntima de Virginia Woolf, Sylvia Plath, Susan Sontag e Carolina Maria de Jesus. Para além do registro do cotidiano ou de subjetividades, Luisa defende que os diários dessas autoras funcionam como laboratório de escrita, espaço de trabalho. É nos diários que elas desenvolvem as técnicas que serão colocadas em prática nas suas publicações.
O diário é também um registro para a posteridade; quem escreve, muitas vezes sabe (e às vezes até deseja) que seus escritos serão lidos um dia. Portanto, há também um esforço em costurar uma narrativa. Criar um recorte do que entra e o que fica de fora do diário. Escreve-se para si, para se entender, para se elaborar, mas com a consciência de que haverá um leitor. Mesmo que esse leitor seja a você do futuro.
Luisa começa as aulas lendo passagens dos diários das autoras escolhidas. Em julho de 1914, Virginia Woolf escreveu: “Quanto eu não daria para pular umas trinta páginas para saber o que vai acontecer conosco”. Um diálogo metafísico. Como se o diário tivesse as respostas para o futuro que a própria autora terá que escrever conforme a história se desenrola no presente.
Sempre escrevi diários. Que eu me lembre, desde os 12 anos escrevo com frequência. Devo ter mais de 30 cadernos com anotações do meu cotidiano. Meus anos de adolescência dariam algumas temporadas de Malhação, com muitas histórias de amor, desamor, brigas entre amigas, com pai e mãe, viagens e festas onde o principal cenário era a escola. No ensino médio eu tive um diário secundário, um caderno velho de espiral bem molengo em que eu escrevia um diário romanceado durante as aulas, inventando ou aumentando coisas que aconteciam no cotidiano escolar e trocando os nomes, tomando muito cuidado para ninguém saber o que eu escrevia ali às vistas de todo mundo. Era um laboratório de escrita em sua essência. Nunca fiz nada com aquelas páginas.
Dos 20 anos em diante, meus diários se fragmentaram. Tinha um diário principal, que eu escrevia em casa ou em viagens mais longas, e os cadernos de anotação que viviam na bolsa e ganhavam observações e confissões dependendo do tempo que eu tivesse disponível. Hoje ainda é assim, mas também separo caderninhos específicos para certas ocasiões – caderninho da Flip, caderninho de Inhotim, caderninho de praia etc.
Em 2013, fui estudar na Inglaterra por um ano. Foi uma mudança drástica de vida. A viagem de ida já deu todos os sinais disso. Quando finalmente cheguei e me instalei no dormitório da faculdade, a primeira coisa que fiz com a internet configurada e o computador conectado foi criar um blog para registrar meus 365 dias em Surrey. Escrevi sobre todos os meus dias por quase um ano, relatando os choques culturais, as peripécias de morar sozinha pela primeira vez, as aulas e trabalhos da faculdade, as pequenas viagens que consegui fazer, o estágio, e também os encontros e situações sociais.
O último post publicado em janeiro de 2014 dá conta do dia nº 358, em que eu já me preparava para me despedir da Inglaterra, do intercâmbio e daquela vida que construí ao longo de quase um ano. Voltei para casa sem nunca registrar o dia nº 365. Há 9 anos adio essa despedida.
Contei essa história na aula de diários e a decepção foi geral, com muitos estímulos para que eu voltasse ao blog para concluí-lo. É algo que está na minha lista de tarefas, mas sou extremamente boa em procrastinar. Para quem lê aquele diário sem me conhecer, fica parecendo uma história inacabada, mais um blog abandonado às moscas. Mas nem tudo que está escrito e registrado dá conta da realidade. A vida de fato acontece fora do papel. Mesmo as biografias não dão conta de tudo (outro assunto que surgiu na aula e numa roda de conversa do Leia Mulheres Niterói). Afinal, a escrita é sempre um trabalho de seleção, orientou Tatiana Pequeno na aula inaugural do curso no Sesc.
Talvez eu ainda esteja me despedindo de 2013; da vida que achei que teria depois do intercâmbio, da pessoa que achei que seria, dos livros que achei que escreveria, das pessoas que achei que amaria. Ou talvez essa seja só uma desculpa – uma seleção que faço na minha autoficção – para tudo que ainda não fiz depois do dia 365.
Lista de leitura: diários
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Os diários de Virginia Woolf, vol. 1, vol. 2 e vol. 3, traduzidos por Ana Carolina Mesquita e publicados pela editora Nós.
Diários de Sylvia Plath: 1950-1962, traduzido por Celso Nogueira e publicado pela Biblioteca Azul.
Diários: 1947-1963, Susan Sontag, traduzido por Rubens Figueiredo e publicado pela Companhia das Letras.
Diários II: 1964-1980, Susan Sontag, traduzido por Rubens Figueiredo e publicado pela Companhia das Letras.
Casa de alvenaria vol. 1 – Osasco, Carolina Maria de Jesus, Companhia das Letras.
Casa de alvenaria vol. 2 – Santana, Carolina Maria de Jesus, Companhia das Letras.
Das páginas do meu diário:
Sábado, 12 de agosto de 2023
Chego em casa depois da aula no Sesc e não me sinto em casa. A cabeça ainda nos assuntos discutidos em sala. Mas na sala de aula eu também não estava em casa. Por algum motivo mexi excessivamente no celular, queria estar em outro lugar que não sei dizer. Mas quando fazia minhas anotações no caderno, era como se tudo estivesse em seu lugar. Então, entendi. Agora, entendi. Do momento em que me senti estranha na minha própria casa e a primeira coisa que pensei foi meu diário – este diário – entendi. Em casa é quando eu escrevo.
Portanto, é curioso que eu evite escrever nesse diário com frequência. Como posso passar uma semana longe de casa, longe de mim mesma? Eu que tenho tanta ansiedade com viagens.
Mas talvez seja preciso. Não dou conta de ser eu – esta eu – quando tenho uma vida acontecendo. Uma vida externa, digo. Se preciso trabalhar com textos de outras pessoas, revisar, marcar, cortar, traduzir, não posso ser eu. Se preciso sair, ir ao mercado, pagar contas, é uma outra eu que vai. Até a eu que encontra amigas para tomar um café e passar a tarde no museu é uma versão filtrada, resumida, adaptada desta eu.
Esta eu, no entanto, sai para caminhar. E nessas caminhadas ela se encontra e talvez por isso eu não sinta tanta falta de me escrever. Porque o encontro que tenho comigo quando caminho me basta de um jeito como escrever me basta. Mas sem precisar escrever.
Na verdade, quando caminho, sempre o mesmo trajeto, no mesmo horário, às quintas-feiras, ao encontro da outra eu que sou na terapia, já faço algo como escrever. Que é pensar. Teço livros inteiros em pensamento e liberto pelos pés o que me pesa e sobrecarrega. Como se retirasse pedras dos bolsos. Caminho e penso e me torno mais leve. Esvaziada de mim e ao mesmo tempo tão plena. E quando volto à casa, me sinto em casa. Porque estou comigo e não preciso me escrever para me encontrar.
E talvez seja esse o sentimento que persigo – o estado que persigo – ao escrever estas Cartas para Ninguém. Encontrar a mim mesma nos textos que escrevo para ser lida. Para ser lembrada.
Mas tenho pressa. Não espero a posteridade. Meu jeito de adiar a despedida é me fazer ser lida ainda em vida e enquanto me descubro.
Quanto mais escrevo, mais me constituo enquanto sujeito.
Sylvia Plath, em seus Diários
Estas Cartas são como um diário em que me debruço e me derramo e me desnudo para uma plateia como em uma performance: a escritora está presente. Você que me lê acompanha em tempo real a construção da minha escrita – e a sua desconstrução.
Estou gritando aos quatro ventos: eu existo, eu existo, eu existo.
Existir é um hábito que não perco as esperanças de adquirir
Susan Sontag em Pensar contra si próprio: reflexões sonre Cioran
O que eu li essa semana 📚
Esse lindo texto da Mariana Gregório sobre Elena Ferrante, memórias e essa angústia que é escrever.
Eu sou macuxi e outras historias, de Julie Dorrico, tema do Leia Mulheres Niterói cujo encontro acontece nesta tarde de domingo.
Ponha-se no seu lugar, livro de poemas de Geneviève Faé.
Esse texto reconfortante da
contrariando Virginia Woolf e dizendo que ta tudo bem não ter um teto (ou um tempo) só seu pra escrever.
O que eu vi essa semana 📺
Babilônia, de Damien Chazelle. Essa crítica resume bem a grandiosidade e o absurdo que foi esse surto coletivo. O que eu salvo desse delírio é a Margot Robbie absolutamente estonteante. Depois de Barbie, quero ver todos os filmes da gata.
Ozark, temporada 2. Laura Linney simplesmente maravilhosa.
Capitu e o capitólio, de Julio Bressane no Cine Arte UFF. As segundas de cinema estão de pé! Gostei dessa crítica sobre o filme.
Belas Maldições, temporada 2. Absolutamente destruída pelo desfecho e torcendo para os roteiristas saírem vitoriosos da greve e se animarem a escrever a temporada final. Eu só queria um café da manhã alcóolico no Ritz, sabe.
Muito bom!
querida! adorei ler sobre os diários, eu também escrevo constantemente no meu e dali tiro pautas para newsletter e ideias para romances. eu adoraria fazer esse curso que vc está fazendo ❤️ aproveita!
obrigada pela menção ✨️