"Cedo ou tarde tudo tem que morrer. Se não morre, precisamos matar." A frase que a protagonista Eva repete ao longo do filme deveria me preparar para o desfecho dessa história. O título, Amores covardes, também. Afinal, para amar é preciso coragem; sem ela o amor não acontece. Ainda assim, assisti com a esperança cega dos finais felizes Eva reencontrar e resgatar a amizade com Rubén depois de longo tempo separados – apenas para vê-los separados de vez ao final.
Acompanhamos Eva desde o momento em que ocupa um apartamento vazio. Vem de Madri, suponho, passar as férias de verão há muito adiadas em sua cidade natal, Málaga. Pouco a pouco espalha suas raízes pelo apartamento, desempacotando caixas, enfileirando livros na estante, esparramando desenhos de troncos e raízes, armando uma mesinha de centro sobre a qual espalha as mil peças de um quebra-cabeça de Hopper que passará as férias montando.
Sai com os amigos, a irmã tenta lhe apresentar um homem bonito, porém chato desde a primeira palavra proferida. Todos lhe dizem para curtir a vida, não trabalhar tanto, se permitir mais. Eva resiste, raízes fincadas em sua convicção de não estar mais com homem algum.
A resistência de Eva a permanecer sozinha, se isolando dos amigos e trabalhando mesmo de férias é confrontada pela insistência de Rubén em restaurar a amizade despedaçada por anos de afastamento. Há seis anos o rapaz fez uma escolha, e entre a amiga e o amor, ficou com o amor de uma mulher que pelo visto não se dá com Eva. Recém-separado e juntando seus pedaços, Rubén tenta consertar os erros do passado e Eva logo desiste de resistir e dá uma nova chance ao amigo de adolescência.
Conforme o verão avança, Eva e Rubén reaprendem a ser amigos e resgatam o prazer de estar na companhia um do outro, para o bem e para o mal – Eva encontra nele o conforto de estar em casa após sair de um relacionamento traumático, enquanto Rubén revive a paixão não correspondida pela amiga. O único beijo que compartilham se dá no chão azulejado do banheiro, os dois bêbados de fim de festa, com uma Eva semiconsciente e um Rubén arrependido por avançar o sinal sem que ela tenha lembrança disso no dia seguinte.
A mudança é um tema presente. Na primeira conversa ainda tensa dos dois, Eva diz que não podem ser mais amigos porque ela mudou, não é mais a mesma. Ele insiste que podem procurar para tentar encontrá-la. Mais à frente, Eva muda o discurso e admite que ninguém muda de verdade – mas nesse ponto já há uma mudança em curso.
À medida que Eva vai se reapropriando da cidade onde nasceu e dos sonhos de ser artista que trocou pelo salário de designer, Rubén passa por outras mudanças fora da tela que descobrimos pela reação de Eva ao telefone com o que ele não diz – para o espectador, pelo menos. Enquanto Eva finalmente entendia que os sentimentos de Rubén por ela eram de amor e por sua vez se permitia amá-lo também, Rubén entendia que Eva seria sempre inatingível, e acaba retornando para a ex-namorada e se afastando mais uma vez.
Para a irmã de Eva e também para o espectador, parece que Rubén repete o ato covarde de tirar o corpo fora e desfazer uma amizade tão rica para priorizar um relacionamento que ele mesmo disse não ser tão bom. Já Eva, mais madura, entende que o movimento de agora é diferente. O amor deles tinha prazo de validade, não foi vivido no tempo certo e expirou. Tudo morre um dia, lembra Eva, e se não morrer, precisamos matar. Chegou o tempo da amizade – e do amor – de Eva e Rubén morrer.
Agora, é Eva quem vai embora. Não de volta para a vida estressante na agência, mas para uma bolsa de artista numa galeria de arte em outra cidade. Com um mergulho no mar, Eva se despede do verão, da cidade natal, e mais uma vez empacota sua casa para pôr o pé na estrada. Não sem antes mais uma despedida. Rubén aparece à sua porta, sem dizer nada. Eva cogita fugir, entra no carro, encaixa a chave na ignição, fazendo jus ao seu amor covarde. Porém, num último gesto de coragem, sai do carro, abraça o amigo pela última vez sem dizer nada e dá por encerrada essa etapa de sua vida – para perseguir amores corajosos, espero.
Resisto à tentação romântica de imaginar o que seria do filme de Carmen Blanco caso os amores de Eva e Rubén fossem corajosos – seria outro filme. Em vez disso, me lembro de todas as vezes que também amei covardemente – e fui amada covardemente. Me solidarizo com a imaturidade dos personagens, me solidarizo com a imaturidade que já tive e ainda tento superar.
Hoje sei que amar requer coragem, assim como criar. Escrevo num poema do livro novo – spoiler: é sobre amor – que ao amar, me entrego inteira, em desespero, no que preciso me corrigir: não há entrega sem esperança. Se não fosse por ela eu não estaria aqui, desnudando minha arte de corpo e alma. Revelando minhas fraquezas. Compartilhando sonhos e desejos. Na esperança de ser amada – ainda que só em forma de likes.
Para amar
Para amar é preciso
Enfrentar o medo
e despir-se inteiroMergulhar fundo
e subir para respirarEncarar o espelho
e reconhecer-se neleSuportar a si mesmo
para suportar o outroSer sincero
para ser verdadeiro– poema do meu livro É na cacofonia que eu me escuto. Ouça/veja uma leitura desse poema aqui e compre o livro comigo aqui.
Tudo tem que morrer um dia, afirma Eva. Esse é um fato da vida, concordo. Amores vem e vão, trabalhos também, pessoas, bichos, casas, sonhos. Tudo tem validade limitada. Mas nem tudo precisa morrer. Nem tudo precisamos matar. Deixemos a esperança respirar.
Roubei as imagens daqui, daqui e daqui. Nos dois primeiros links tem críticas do filme em espanhol (que não li). A fonte consultada para escrever esse texto é 50% o filme e 50% vozes da minha cabeça.
estou flertando sério com o seu livro (não falta coragem, falta dinheiros pra comprar kkkrying) e anoto a indicação desse filme (to lendo newsletters atrasadas do ano passado, não estranhe)
Preciso ver o filme antes de tecer comentários, mas anos atras, talvez décadas, assisti algo assim do qual nao recordo nomes, ainda que me venha a imagem / lembrança (falsa ou não) de que era falado em Francês.