13/01/25
Criar é dar corpo ao efêmero. Materializar o que não tem matéria. Dar forma ao sonho. Nunca é a forma ideal, mas a forma possível.
Tenho esses pensamentos pouco depois de fechar os olhos e antes de adormecer. Tenho pensado sobre o efêmero desde que vi a exposição de Brígida Baltar no Museu de Arte do Rio - MAR no último sábado (11/01). Roupa de coletar neblina. Sapatos de catar orvalho. Frascos de guardar maresia e lágrimas. Vídeos para imortalizar a interpretação de uma ópera. A canção, a mais bela forma de poesia, porque ganha vida através da voz e se desfaz tão logo é enunciada.
Pelo gesto de guardar o impermanente, a artista se fez permanecer, tanto nas paredes da casa onde recortou sua silhueta quanto nas esculturas que moldou com as próprias mãos. Conchas. Pedras. Restos que ficam. Através do bordado registrou ainda os sintomas de sua leucemia e os efeitos adversos do tratamento. Pelos. Petéquias. Detalhes indesejáveis no corpo de pessoas saudáveis, mas que no corpo de Brígida eram lembretes de permanência. Doente, mas ainda aqui. Ali eternamente em todas as suas criações.
“Quanto mais o tempo passa, mais somos capazes de fazer escolhas. Eu sinto isso. Existem muitos estímulos no mundo, em toda parte, o tempo todo e parece que cresce cada vez mais o acesso a infinitas possibilidades. Na verdade não dá tempo para tudo. Na vida e na arte.” – Brígida Baltar em entrevista à Marcelo Campos. (Arte Acontece)
A permanência também está nos gestos, me lembrou uma amiga de infância em uma conversa recente no Instagram. A lasanha que minha faz como sua mãe fazia. A forma como minha avó armazenava os alimentos na geladeira otimizando os espaços e que me vejo repetindo. Meu gesto de esfregar os dedos da mão para afastar as migalhas de pão que minha mãe viu no meu pai. Somos um arquivo vivo de memórias gestuais. Dominar os gestos, como fazem as grandes artistas, mover o corpo, também é uma arte e uma forma de marcar sua presença no mundo.
Toda forma de arte é um manifesto de existência e um desejo de permanência. Como disse Fernanda Torres em seu discurso de agradecimento ao Globo de Ouro de melhor atriz dramática por Ainda estou aqui, “a arte permanece”. As performances de sua mãe, as suas performances, os livros escritos, tudo o que essas duas Fernandas magníficas fizeram resistiu ao teste do tempo e é celebrado até hoje. O que esperamos de nossa arte é que ela dure. Nada mais.
Tocada pela arte de Brígida e das Fernandas entro em 2025 com uma única certeza: arte vale a pena. E a boa arte dura.
Mais sobre Brígida Baltar e a exposição no MAR, que fica até 05 de março de 2025
Fernanda Torres tenta definir o que é a arte
Ainda estou aqui segue em exibição em vários cinemas do Brasil.
Mais sobre fazer arte em 2025
O que eu ando…
lendo
Elogio da tradução, da Barbara Cassin. WMF editora (não ficção)
Todo o resto é muito cedo, da Luiza Mussnich. Bazar do Tempo (poesia)
assistindo
A amiga genial, série baseada na tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Na Max.
The sex lives of college girls, comédia inteligente sobre mulheres no espaço acadêmico. Também na Max.
Garota do momento, novelinha das seis gostosinha que se passa nos anos 1950 mas discute temas atuais de forma muito bem feita. Na Globo.
Tieta do Agreste, reprise da melhor novela de todos os tempos (sinto muito, Vale tudo e Avenida Brasil). Também na Globo.
fazendo
Escrevendo o texto da qualificação pro mestrado
Planejando fantasias de carnaval
Rodapé
O texto dessa edição foi escrito há uma semana. De lá pra cá, outras notícias chacoalharam o mundo das artes de forma que ainda não consegui digerir, mas cito aqui a título de registro e compartilho o que outras pessoas já escreveram a respeito.
There is no safe word, artigo da Vulture sobre os abusos cometidos pelo escritor de fantasia Neil Gaiman
O mais recente episódio do podcast Rádio Novelo apresenta
O que fazer com a arte de homens monstruosos (Paris Review, 2017, em inglês; traduzido aqui)
Amei essa caarta!! Adorei conhecer essa artista. E que sensibilidade. Obrigada por compartilhar isso conosco. Estou triste que não vou poder ver a exposição, mas pelo menos fico alerta para novas coisas. E sobre Bárbara Cassin <3!!!! Sem mais. Uma descoberta no meu mestrado de tradução que me deixa feliz saber que existem pessoas no mundo assim. Se puder folhear o dicionário filosófico dela, é sensacional! (uma visão um tanto eurocentrada, mas ainda assim bem interessante e poético).
Quem dera maresia pudesse ser ensacada. Morro de saudades... E obrigada pela menção 🌸