Como andar de bicicleta
Durante semanas eu não pensava em outra coisa. Acompanhei o lançamento nas redes sociais; vi a instalação das estações perto de casa; por fim a chegada delas: as bicicletas compartilhadas da prefeitura de Niterói, denominadas Nitbikes ou roxinhas.
Demorei muito tempo para testar as laranjinhas do Rio, mas peguei gosto. Já pedalei com meu pai e meu irmão na Praia da Barra e no Canal de Marapendi e com minhas amigas no Aterro do Flamengo e no Boulevard Olímpico. Mas não precisar atravessar a Baía de Guanabara para andar de bicicleta parecia um sonho.
Passei pela estação da loja maçônica, na esquina de casa, várias vezes, só olhando. Quase não há bicicletas disponíveis durante o dia, mas todos os dias por onde eu vou vejo as roxinhas circulando pela cidade. Baixei o aplicativo. Ensaiei uma retirada, mas faltava completar o cadastro. Voltei pra casa. Dias depois, completei o cadastro, tudo certo. Um dia eu vou. No fim de semana eu vou.
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Andei de bicicleta pela primeira vez aos 3 anos de idade. Eu e minha prima-irmã ganhamos bicicletas iguais da Barbie, presente póstumo de nossa avó materna. Aos fins de semana meu pai descia comigo para o play do prédio onde cresci e voltei a morar há alguns anos para andar com minha bicicleta. Me lembro de quando ele tirou as rodinhas e eu provavelmente caí muitas vezes até conseguir pedalar em linha semi-reta.
Andei naquela bicicleta até uns 6 anos, acho, depois eu já estava grande demais. Não me lembro o que foi feito dela. Mas quando me mudei de volta, pude jurar que ainda estava no bicicletário do prédio.
Domingo, 21/07. Tenho um artigo para escrever, livros para resenhar. Encaro a tela do computador por tempo demais, leio as palavras sem entender suas conexões. Me distraio com um filme absurdo do Keanu Reeves na TV. O tempo passa, o dia está lindo, e eu não consigo trabalhar nem aproveitar. Desisto da inércia e decido que meu corpo precisa de movimento. Visto uma roupa, calço os tênis e saio de casa.
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Aquela bicicleta da Barbie foi a única que tive até hoje. Aos doze anos eu já tinha esquecido como se andava de bicicleta. Meu pai me levava para a Lagoa Rodrigo de Freitas e alugávamos bicicletas por hora para dar a volta na Lagoa inteirinha. O começo era sempre difícil. Suava frio, ficava nervosa, desequilibrava, começava a chorar. Mas meu pai insistia. Uma hora eu conseguia e pedalávamos. Eu quase sentia prazer no gesto. O vento no rosto, a paisagem.
Mas desviar das pessoas era um tormento, principalmente nos trechos em que a ciclovia compartilhada é uma pequena tira de calçada entre a avenida movimentada e a lagoa. Não conseguia escolher qual era o pior lado para cair. Mas nunca caí nesse trecho, só nas áreas mais espaçosas, perto do fim do passeio.
Ouvi uma vez que os acidentes de carro costumam acontecer perto de chegar ao destino, quando os motoristas relaxam mais por chegarem ao fim da jornada. Nunca busquei a fonte dessa informação.
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Chego na estação de Nitbikes perto de casa, destravo uma bicicleta e ensaio umas voltas na rua do instituto de educação, sem trânsito no domingo. Ainda bem que resolvi praticar antes, pois percebo que o pedal está meio solto. Devolvo a bicicleta, reporto o problema pelo aplicativo, mas não há outra bicicleta disponível. Frustrada, caminho em direção à praia onde sei que há mais estações. Suspiro pensando que só posso confiar nas minhas pernas. Mas se tudo der errado, pelo menos eu vi o mar.
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Em 2020 eu conheci um turista alemão na Barra da Tijuca. Ele ia a todos os lugares de bicicleta. Um dia ele me chamou para acompanhá-lo até o shopping — de bicicleta; não era um passeio, era uma tarefa: buscar algo e voltar a tempo de outro compromisso. Respirei fundo e topei. Desci com meu pai para a garagem, ajustei o banco da sua bicicleta à minha altura, ensaiei umas pedaladas tortas, mas quando vi a rampa da garagem, travei. Era um trajeto curto até o shopping e todo em linha reta por uma ciclovia, mas não me senti capaz. Liguei pra ele e disse que não ia mais. Ele não percebeu o tom de derrota na minha voz.
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Meus pés conhecem de cor o caminho até o mar. Há anos faço esse trajeto. Passo pelo caminho das pedras secas e molhadas, conhecida como rua do Perdeu, pois há muitos assaltos na área. Viro à esquerda na rua da minha escola do fundamental e depois à direita na rua onde morei por 18 anos. Há uma estação de Nitbikes ali, mas nenhuma bicicleta disponível. Desço a rua até o fim sem olhar para o meu antigo prédio, passo pelo tradicional churrasco de domingo do botequim que por anos reivindicou a autoria do melhor pastel de Niterói, atravesso a rua, passo por casas lindas em ruínas e chego à praia. Viro à esquerda até a pracinha e lá encontro muitas bicicletas à disposição. Examino os pedais de cada uma, escolho a que parece estar em melhor condição e decido que vou me arriscar no calçadão.
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Em 2013, na minha primeira semana morando em Guildford, Inglaterra, acompanhei um grupo de amigos em uma longa jornada pela cidade interiorana num sábado para eles comprarem bicicletas de segunda mão. Na volta, os dois amigos seguiram para o alojamento pedalando, e eu e outro amigo tivemos que nos virar de ônibus. Não me passou pela cabeça em momento algum comprar uma bicicleta também.
A primeira coisa que constato ao pedalar no calçadão da Praia das Flexas é que minha campainha não emite som. Paro no letreiro Eu ❤ Niterói para descobrir como acioná-la e avisar aos pedestres que estou me aproximando. Detesto ciclistas que não usam campainha, não quero ser um deles.
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Na primeira vez que fui a Amsterdã, em 2013, corria sempre o risco de ser atropelada por uma bicicleta, pois as ciclovias se confudem com as calçadas. Numa noite, voltei pra casa da minha amiga na garupa da bicicleta de um holandês que riu o caminho inteiro da forma assustada que eu me agarrava a ele e dava gritinhos com medo de cair.
Chego ao largo calçadão da Praia de Icaraí e me alegro com a decisão de pedalar no fim de tarde. Embora ainda tivesse muita gente caminhando e correndo, o movimento da tarde é bem menor que o da manhã. Pedalei com tranquilidade até o fim da praia, tirei umas fotos e comprei uma água de coco antes de fazer o caminho de volta.
Em 2011, andei na garupa de bicicletas duas vezes. Uma durante o dia, com um rapaz que namorei por meio segundo. Foi uma experiência incômoda, como a carona do holandês, senti medo e vergonha o tempo todo. A outra vez foi de noite, voltando de uma festa da faculdade com um cara que tinha acabado de conhecer e acabou fazendo parte da minha vida por alguns anos. Não tive medo nenhum.
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Paro no letreiro Eu ❤ Niterói para ver as tartarugas. O mar está claro e calmo, alguns garotos pulam de uma pedra e mergulham no mar. Sinto medo só de olhar, mas eles emergem ilesos e parecem se divertir. Um pai conversa com o filho ao meu lado e o filho parece compartilhar algo muito íntimo, pois começa as frases com “eu me sinto como…”. Acho bonita essa cumplicidade. Pra quebrar o clima, eesbarro na bicicleta e ela cai, quase jogando nas pedras minha bolsa, casaco, celular e garrafa de água de coco que estavam na cestinha. O pai me ajuda a levantar a bicicleta. Agradeço e pedalo para longe, pensando que talvez seja hora de encerrar o passeio.
Em 2021, um amigo me convidou para andar de bicicleta, estava disposto a me fazer perder o medo. Respirei fundo. Fui até sua casa, pegamos as bicicletas e dei várias voltas na pracinha em frente até me acostumar com a ideia. Eu tremia e suava muito. Mas confiei. Foi um longo percurso e bem assustador. Fui seguindo-o paralelo ao meio-fio, passando ao lado de carros, motos, ônibus, tentando ao máximo me concentrar só na bicicleta dele à minha frente e mais nada.
Finalmente chegamos à praia, ao calçadão e subimos a estrada costeira, uma ladeira considerável, mas de pouco movimento. Entoei Marisa Monte na minha cabeça durante essa parte do trajeto, sempre no encalço dele, cada vez mais confiante. Chegamos a outra praia, pegamos uma ciclovia, quase bati em dois caras com uma canoa e paramos na Praça do Rádio Amador, de frente pro mar, onde descansamos e vimos tartarugas. Refizemos o trajeto até a casa dele, mas na descida da estrada costeira dei uma freada brusca e machuquei feio a virilha. Foram semanas até sarar o hematoma.
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Retorno à estação onde peguei a roxinha, mas ainda tenho bastante tempo até meu passe gratuito expirar. Dou umas voltas na pracinha pensando qual caminho seguir agora, que ruas são mais fáceis de pedalar, quais trechos de ciclovia me levariam até em casa. Volto pela praia até minha antiga rua, e dali viro à esquerda numa rua movimentada, mas que tem ciclovia, em direção ao bairro da Boa Viagem para um longo desvio até voltar para casa. Estou confiante.
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Uma das minhas lembranças mais antigas é de ter sido atropelada por uma bicicleta no Campo de São Bento. Me lembro de ser bem pequena – 2 anos, talvez? Foi perto do coreto e do rink de patinação. Eu estava com os meus pais, a memória é difusa. Lembro de uma agitação, um susto, a bicicleta desviando, eu caindo, meu pai me pegando no colo. Minha mãe certamente se lembra dessa história de outra forma; talvez eu não tenha sido de fato atropelada. Mas o que eu mais me lembro era de comentar ao longo dos anos a título de curiosidade que eu já tinha sido atropelada por uma bicicleta.
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No meio da ciclovia há um carro estacionado; decido desviar para a calçada, mas em vez de me manter paralela à rua, acabo seguindo na diagonal e vou com tudo pra cima de uma mureta. Bato de lado, meus óculos de sol voam para o chão, sinto a bochecha e a coxa esquerda em chamas. Me recomponho, segurando o choro. Olho em volta, nenhuma testemunha para o meu fracasso. Há um hospital logo em frente, se precisasse, mas não é o caso. Recolho os óculos do chão, enquanto uma perna segue firme na minha orelha. Troco pelos óculos de grau, ajusto o banco entortado, respiro fundo e recalculo a rota.
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Em vez de seguir para a Boa Viagem, viro na rua do antigo IACS, dobro na outra rua do Perdeu e chego na estação da loja maçônica, na esquina de casa. Faço uma curva brusca e a garrafa de água de coco vai ao chão: dos males o menor. Devolvo a bicicleta, recupero a garrafa e caminho para casa sentindo o chão sob meus pés novamente como quem chega do mar à terra firme.
Mais tarde comento com o amigo da bicicleta sobre os hematomas adquiridos e ele diz que quebrar-se é bom, memento mori. Não discordo.
Volto para o meu texto. Percebo que escrever é como andar de bicicleta.
P.s.: escondi alguns poemas nos links dessa carta. Me conta quais você achou?
Recomendações
Para ler📚
Pré-vendas abertas
Línguas soltas, plaquete de poesia da minha amiga Thaís Campolina, pela editora Primata.
A poeira da casa ainda dança, segundo livro de poesia da também amiga Marina Grandolpho, pela editora Patuá.
Na minha estante
Expansão marítima, da Taís Bravo, pela Edições Macondo. Finalmente me deixei levar por esse relato sensível de uma relação entre pai e filha e as questões que os aproximam e afastam como ondas na praia.
Burnoutinho, da Letícia Fernandes Leal. Editora Minimalismos.
Para ver📽📺
Todos nós desconhecidos, no Disney+. Um filme delicado e doloroso sobre despedir-se do passado para abraçar o futuro, ou despir-se do luto para abraçar o amor. Com o padre de Fleabag (Andrew Scott) e o pai de Aftersun (Paul Mescal). Esperava resolução, encontrei desolação: 10/10
Para ouvir🎶🔈
O melhor podcast que existe voltou: Bobagens Imperdíveis, da
, agora está também aqui no Substack além de em todas as plataformas de áudio.
Agenda📅
Na quarta-feira às 20h eu e a Casa das Poetas vamos conversar com a
sobre seu livro Caminhos curtos para caracóis. É online, é grátis, só vem! Inscrições aqui.
Esta publicação é gratuita, mas se você gosta do que escrevo e gostaria de me apoiar para além da leitura, pode me pagar um café no pix: luiza.leite.ferreira@gmail.com
Eu também uma vez fui atropelada por uma bicicleta. No meu caso, foi tão tragicômico que ler aqui me levou de volta para aquela batida digna dos Trapalhões e caí na risada. Obrigada por gatilhar essa memória tão obscura 😅
Amo andar de bicicleta e tenho muitas memórias de sustos e também de passeios incríveis. Adorei teu texto.