Ir à praia não é um simples evento. Ir à praia é um estado de espírito. Um tempo suspenso. Uma meditação.
Aprendi a fazer muitas coisas sozinha se não jamais as faria. Por isso vou ao cinema sozinha e à praia sozinha. Não espero ter companhia.
Não é preciso ir à praia para ir à praia. É possível encontrar a praia na montanha ou na cachoeira, ou até mesmo em casa; mas exige concentração e prática. Em casa é muito fácil se distrair com coisas que não encontramos na praia, não permita que isso aconteça. Na praia, só podemos nos concentrar no que acontece na praia e nos distrair com as coisas que trouxemos na mochila – não é preciso bolsa de praia para ir à praia sozinha. Qualquer sacola serve.
Gosto de ler na praia, por exemplo. Sempre trago um livro. Às vezes escolho o livro errado, paciência, na praia só podemos ter um livro, é a mesma lógica da ilha deserta. Não se leva uma biblioteca para uma ilha deserta. Então este livro errado terá que aprender a ser o livro certo. É bom que o livro escolhido seja cativante, mas se não for, use-o para se abanar, pelo menos. Ou use suas páginas para escrever um novo livro, texto sobre texto, palimpsesto. Outra regra da praia: tenha sempre papel e caneta, ainda mais se pretende escrever um livro sobre a praia enquanto está na praia.
A praia que se vai sozinha não precisa ser a melhor ou mais distante; é melhor que seja a mais próxima e conveniente, que dê para ir a pé ou a uma curta viagem de ônibus. A praia onde se encontra os vizinhos aposentados e as jovens mães com crianças pequenas em pleno dia de semana. A praia que se vai sozinha é mais bem aproveitada durante a semana, na presença dos esportistas e banhistas assíduos que sabem dizer que horas a maré sobe, até onde dá pé, naquele canto há tartarugas.
Os mergulhos no mar devem ser os mais longos possíveis. Valorize o tempo na água. Não se preocupe com as coisas deixadas na areia – confie na bondade de estranhos. Comemore ao ver pessoas que entraram na água com você ou depois de você saírem antes de você. A água é toda sua, na água você realmente se espalha, se entrega, se dissolve. Agradeça à água. Agradeça ao mar por carregar seu corpo em seus braços. Quantas pessoas você conhece que te carregariam nos braços pelo tempo que desejar? Só o mar te proporciona o colo infinito e o embalo que te convida a um cochilo.
Tenho esse desejo de aprender a dormir na água. Conseguir me virar de ladinho e fechar os olhos num sono leve e embalado pelas ondas, me cobrir com uma líquida camada de água salgada. Não existe colo mais gostoso que o do mar.
Mar, em francês, é feminino e se escreve parecido com “mãe”. Portanto, para os franceses, mar é a mãe, o que faz sentido. Em português, mar é masculino e o associo ao meu pai, que também ama o mar e é o único homem que já me deu colo, o que faz sentido para mim.
Procura-se: um colo que me embale como o mar.
Depois de dizer suas preces ao mar e sentir a pele dos dedos começar a enrugar, nada como um banho de sol para dourar e aquecer a pele antes de voltar para casa. Mas, por que a pressa? Fique um pouco mais. Caminhe pela beira d’água antes de calçar os chinelos. Veja o que o mar depositou na areia. Milhares de conchas de moluscos que brilham ao sol. Algumas pedras – de sal – ou seriam quartzos? – Você ouviu falar de vidro marinho, mas fica em dúvida se essas pedras verdes e azuis tão cristalinas são criação da natureza ou apenas resquícios de garrafas de cerveja modificadas pelo tempo. Não importa. Você aprendeu a enxergar a beleza nos restos.
Você sabe desde pequena que não se deve retirar as conchas da praia, o que é do mar é do mar e lá deve ficar. Mas não consegue resistir. Não hoje, não nesse dia de praia perfeita em plena segunda-feira. Você se demora entre as conchas, entre as pedras, entre os fósseis de existências que não a sua. E mesmo quando uma bola de altinha atinge em cheio o cemitério de conchas você não se abala. Segue na sua observação. Segue escolhendo um pedacinho daquele dia para levar para casa.
Quando finalmente se rende, sai da praia com seus presentes. Limpa a areia dos pés cuidadosamente com a ponta da canga, veste a roupa, coloca a mochila nas costas. Faz o caminho de volta. Retorna à casa, ao abrigo do sol. Lava o corpo no chuveiro, lava embora os restos de areia e sal – que retornam ao mar pelo caminho mais longo. Admira a pele marcada no espelho, os espaços que o sol tocou e os que evitou. Evidências da praia vivida estampadas no corpo. Prepara o almoço, e segue com a rotina. Trabalho, leituras, colagens, mensagens. E um sorriso na alma que não se apaga:
Hoje fui à praia.
O que eu li essa semana 📚
Zaralha, de Leticia Novaes (vulgo, Letrux). Um livro-caderno-pasta de textos e desenhos maravilhosos que me trouxe um novo significado para livro e poesia. Que delícia se expressar de forma tão livre e honesta. Esse definitivamente é o livro certo para se ler na praia.
Reli Da costela do impossível da Marcela Alves, poesia de 2022 publicado pela Urutau. É um carinho na alma. A Thaís Campolina escreveu uma resenha linda sobre ele. Compre o livro da Marcela aqui.
Comecei a ler Memórias de Martha, primeiro romance de Júlia Lopes de Almeida, autora brasileira do século XIX que participou da criação da Academia Brasileira de Letras – mas ficou de fora por ser mulher. 🤡 Você já conhecia a Julia, já leu algo dela? Me conta aí :)
O que eu escutei essa semana 🎶
O disco novo da Ana Frango Elétrico
Esta música que atualizou as minhas definições de solidão.
O que eu assisti essa semana 📺
Seguindo a onda d’Os amores covardes, assisti Nina em Roma, que pelo título você pensa que vai ser como Emily em Paris, mas ta mais pra uma Amélie Poulain sem esperança. O filme parece ter sido todo rodado em um único fim de semana em um conjunto de edifícios públicos de Roma, praticamente o único cenário externo que vemos no filme todo. Nina é uma jovem de quase 30 que aceita um trabalho temporário de cuidadora de animais enquanto aguarda uma oportunidade de ir para a China mudar de vida. Por que China? Fazer o quê? Não fica claro. Nina consegue ser mais antissocial que Amélie, e apesar de ter um encontro romântico com um músico bonitão que vive cruzando seu caminho, ela prefere a companhia de um menino de 11 anos que parece saber mais da vida do que ela própria.
Se você está procurando um filme leve e romântico para renovar suas esperanças no amor, não assista Nina em Roma; se, no entanto, gosta de planos artísticos com muitos espaços vazios, sequências oníricas sublimes e personagens herméticas ou achou minha descrição intrigante o suficiente, vá em frente. Disponível no Prime Video (não, eu não recebi nada por esse merchant).
Agenda 📅
📖 Segunda-feira, 30/10 às 20h, rola mais um encontro do clube de leitura Casa de Poetas, com mediação minha. Dessa vez, vamos ler poemas do livro Maquinário feminino e outras conversas e bater um papo com a autora
sobre suas inspirações, processos de escrita e muito mais. Inscrições gratuitas aqui. O Casa de Poetas é um puxadinho da Casa Inventada da querida que acabou de lançar uma newsletter por aqui também (vai lá conferir!).
🎃 Terça-feira, 31/10 às 19h vou hospedar junto com a minha amiga escritora Samantha Chuva uma live-sarau especial de Dia das Bruxas/Samhein nos nossos Instagrams. Quem quiser participar é só levar textos (em prosa ou poesia) com a temática de Halloween, magia, rituais e pedir para participar.
Flip 2023
Novembro está batendo na porta e com ele chega a Festa Literária Internacional de Paraty. Minha participação com o Coletivo Escreviventes está garantida, mas os custos de estadia, deslocamento e alimentação durante os cinco dias de evento são mais salgados que água do mar. Por isso, lancei uma rifa de livro + brindes lá no Instagram, agradeço demais quem quiser e puder contribuir.
Em breve (espero) trarei novidades sobre o livro novo que está em processo de edição e tem tudo a ver com amores covardes e vacilantes como os dos filmes que tenho assistido.
Eu moro na praia e nunca vou. Me dá um cansaço tão grande, mesmo só ficando sentada na areia sem fazer nada, parece que estou exaurida. Mas o seu relato foi tão lindo que me deu até vontade de fazer o mesmo. Bjks
Praia é minha maior saudade. Meu lugar no mundo, meu alento, pai e mãe, amor inteiro. Vamos dar um mergulho na flip? Beijocas