A receita básica para amizade é colocar um grupo de pessoas mais ou menos da mesma idade num mesmo espaço por tempo suficiente para que interajam e descubram se gostam umas das outras ou não. Não à toa fazemos nossos primeiros e mais duradouros amigos no ambiente escolar. Colégio, curso de inglês, natação, escolinha de futebol – qualquer atividade em grupo vale para forçar a criação de laços entre pessoas completamente aleatórias.
Ok, talvez nem tão aleatórias assim. As pessoas que frequentam uma mesma escola podem ter em comum classe social e renda familiar, além do fato de seus pais terem escolhido colocar seus filhos da mesma idade naquela escola específica, fosse pela proximidade de casa, pelo método pedagógico ou porque a escola tinha um páteo espaçoso ou uma grande biblioteca. Fato é que as crianças em si não tiveram muito voto no espaço que iriam frequentar por cinco vezes na semana durante pelo menos uma década e meia, mas nem por isso deixaram de criar laços com aquelas outras crianças estranhas que dividiam o mesmo ambiente.
No começo é simples. Você vê uma menina que usa um arco na cabeça parecido com o seu e por acaso vocês têm o mesmo nome. Que engraçado. E parece que vocês duas gostam de brincar de boneca e um dia ela te convida pra ir à casa dela e ela tem simplesmente a casa dos sonhos da Barbie que você sempre sonhou. Melhores amigas instantâneas.
Às vezes vocês não são da mesma turma, mas se encontram fazendo a mesma atividade extracurricular e na falta de outras pessoas conhecidas, você se arrisca a conversar com aquela menina que viu brevemente no jardim de infância. E então descobrem que gostam de assistir as mesmas coisas na TV e ela te conta em segredo que gosta do L. e você se sente confortável para dividir que gosta do G. Pronto, vínculo criado.
Ou às vezes vocês nem têm tanto em comum, nem são do mesmo sexo, apenas calharam de serem obrigados a passar duas tardes por semana juntos na mesma sala de estudos dirigidos e ele tem brincadeiras muito originais, como criar um jornal ou um esporte inédito ou só te emprestar o videogame dele – e você percebe que é possível conversar com garotos, afinal.
Já deu pra entender: fazer amigos na escola é fácil, moleza. E uma vez que você aprende o básico, consegue replicar em outros ambientes. Tudo o que foi preciso para eu criar um laço duradouro com minha amiga do inglês aos treze anos foi uma música da Avril Lavigne.
No ensino médio saí de uma escola minúscula onde eu conhecia todo mundo para uma escola enorme onde ninguém sabia quem eu era. Ainda assim não foi difícil fazer amigas no primeiro dia de aula – ainda que eu tivesse que repetir o processo no ano seguinte porque as duas amigas que eu escolhi simplesmente pelo fato de se sentarem perto de mim no primeiro dia saíram da escola.
Na faculdade não é muito diferente – na verdade, é até mais fácil. Todo mundo que entra no curso é novo naquele ambiente, é fácil se entrosar com quem está no mesmo barco. E depois tem as festas e os bares pra ajudar a conhecer outras pessoas – aquela velha história de “nunca fiz amigo bebendo leite.”
Então você termina o colégio e a faculdade com uma dúzia de amizades duradouras e verdadeiras e pensa que vai ser fácil cultivá-las. Mas, como os laços foram criados de maneira aleatória, nem sempre os caminhos convergem. Quem diria que sua amiga de infância que tinha o mesmo nome que o seu ia acabar trabalhando na polícia e mudar de estado e vocês não tivessem mais nada em comum? Ou que sua amiga do ensino médio ia se casar e mudar de país e checar as mensagens de celular a cada seis meses? Ou que aquele menino que você julgava seu melhor amigo ia seguir um caminho profissional tão parecido, mas se distanciar tanto a ponto de te ignorar quando se encontram em outros círculos? Pelo menos você ainda tem sua amiga da aula de teatro que acabou virando colega de turma no restante do fundamental e vocês nunca mais se desgrudaram; você até foi sua madrinha de casamento. Pena que ela se mudou para outra cidade, teve um bebê e vocês só conseguem conversar uma vez por ano por aproximadamente duas horas quando ela vem visitar a família – mas como valem a pena essas duas horas!
Todo mundo com mais de 30 anos sabe como é difícil cultivar as velhas amizades depois de adulto, embora os laços se mantenham intactos não importe quanto tempo vocês se mantêm afastados. Mas só esses encontros esporádicos não são suficientes. Precisamos de amigos pra encontrar no fim de semana, pra pular o carnaval, pra trocar mensagens todos os dias no grupo do zap. E convenhamos, não é muito fácil fazer amigos depois de adultos.
Isso porque, com o passar do tempo, paramos de circular por diferentes grupos sociais ou acabamos restritos a um único grupo – o do ambiente de trabalho – que nem sempre será dos mais acolhedores. Mas, e quando você não encontra amigos no trabalho? Daí voltamos aos tempos de criança: buscamos uma pós-graduação, uma aula de zumba, um ateliê de cerâmica, entramos para um grupo de corrida ou coletivo de escrita ou ainda um bloco de carnaval. Passamos a frequentar grupos ligados a atividades que nos interessam na esperança de conhecer gente legal a partir dos mesmos gostos em comum. Mas como saber quais amizades vão permanecer, quais serão endgame?
Em 2015 comecei uma pós-graduação em tradução. Era um curso de dois anos, com aulas aos sábados das 9h às 17h. Um monte de gente estranha que eu nunca tinha visto, gente até de outros estados – do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul –, com idades muito variadas – o mais novo tinha 23 anos e a mais velha, 72. De onde vieram essas pessoas? O que teriam em comum? Além da tradução, sobre o que elas conversariam?
Eu não sei explicar até hoje o que uniu esse grupo tão eclético de nerds jogadores de RPG a gostosas tatuadas, de professoras aposentadas a recém-formados migrando de área, de CDFs quietinhas a piadistas barulhentos. Se me perguntar, minha memória duvidosa não vai lembrar qual foi o momento exato que nos uniu. Talvez a tradução do livro erótico em que aprendemos com a professora sexagenária o que era um “colinho safado”; ou a necessidade coletiva de tomar o café mais barato do campus no intervalo da tarde; talvez a Tina Turner cantando Private Dancer em loop enquanto aprendíamos a legendar clipes; ou ainda a disposição pra beber incontáveis litros de cerveja – e whisky e caipirinha – e dividir contas de mil reais num dos metros quadrados mais caros da cidade.
Sei que, nove anos depois, ainda estamos aqui. Nem todos, é verdade – alguns simplesmente ficaram pelo caminho, coisas da vida. Mas o núcleo duro, ou hard core, permaneceu. E a cada encontro, por mais que demorem a acontecer, renovamos as risadas, as memórias, e a certeza de que nos damos muito bem juntos. Não escolhemos essa turma, mas escolhemos mantê-la viva.
Enquanto me arrumava para o encontro, tive a ideia de levar um jogo de cartas na bolsa, pro caso de ficarmos sem assunto e rolar aquele silêncio estranho.
Nem tirei o jogo da bolsa.
Recomendações
Estou relendo Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, para uma aula do mestrado. Coincidência ou não, Virginia apareceu em três newsletters que acompanho essa semana.
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é mesmo muito difícil de explicar o que une as pessoas em laços fortes de amizade. tenho grandes amigos que são parecidos comigo e outros que são completamente diferentes, o que dificulta o estabelecimento de um mínimo critério que seja. independentemente da razão, o importante é que os amigos estão sempre aí para o que a gente precisar.