Já passava da hora combinada quando ela decidiu checar o telefone mais uma vez. A rua parecia tranquila, mas ela não era nem louca de tirar o celular da doleira. Por sorte, estava na frente de um cinema, o lugar mais pacato do bairro naquela terça-feira de carnaval. Entrou e foi direto para o banheiro, pois já estava com vontade de fazer xixi e encarar o banheiro químico da praça não era uma opção.

Depois de muitos malabarismos para tirar a roupa, se aliviar, e se vestir novamente, já fora do reservado, conferiu o celular. Nenhuma mensagem. Olhou-se no espelho. Vestia um body transparente com conchinhas de paetê no lugar dos mamilos, um rabo de sereia azul turquesa todo de paetê e meia arrastão; no rosto, uma maquiagem dramática que mirou na drag queen e acertou na festa infantil em tons de azul e lilás; e, para completar, uma tiara de conchas na cabeça com fios de pérolas e contas caindo pelos cabelos soltos e ressecados pelo spray de tinta roxa.
Uma sereia no banheiro do cinema às três da tarde. Só no Rio de Janeiro mesmo.
Apesar dessa validação geográfica e temporal, sentia-se ridícula. Onde estava seu Netuno? Talvez ainda no metrô, sem sinal, preso a um cordão de foliões com o celular na cueca sem poder fazer contato. Já tinha perdido celulares em carnavais passados, não arriscaria novamente. Ou quem sabe já estivesse no bloco, procurando por ela, e se perguntando onde estava sua sereia, será que foi nadar em outros mares?
Bom, no bloco não podia estar, pois ela estivera lá. Não era um desses megablocos com carro de som, era um bloco secreto em pracinha de bairro que tocava rock em ritmo de samba e ela já tinha rodado a pracinha toda em sua vestimenta de sereia procurando por seu Netuno. Subiu em bancos e canteiros para tentar avistá-lo mais facilmente do alto, bebeu sozinha um latão inteiro de cerveja que deveria ser dividido e recusou cantadas de piratas, marinheiros e personagens de filmes indie que os frequentadores do baixo Botafogo amam referenciar. E nada de Netuno aparecer.
Pensou que talvez seu telefone estivesse sem sinal devido à grande aglomeração de pessoas sobrecarregando a rede – mas nem tinha tanta gente assim –, por isso resolveu se afastar um pouco e acabou perto do cinema.
Enquanto caminhava em círculos no banheiro, sem coragem de se expor novamente aos funcionários do cinema, uma senhora de blusa de oncinha, broche na lapela e cabelo cheirando a laquê entrou, olhou-a de cima abaixo e se enfiou no reservado. Sentiu-se ainda mais ridícula, mas para não ficar de mãos abanando, resolveu retocar o batom. Agora eram os cristais adesivos do seu rosto que estavam se descolando com o suor. Tentou grudar de novo e acabou borrando a pintura metalizada. Grunhiu de raiva. Então foi ajustar a tiara torta, e nesse movimento, os fios de contas que ela passara a manhã inteira enfiando se soltaram e lá se foram pérolas e miçangas por todo o chão do banheiro. Pronto, sua fantasia estava arruinada. Netuno nem chegou a vê-la em seu esplendor e nem uma selfie ela fez, na pressa que estava de cair na rua e nos braços do crush. Ridícula. Se abaixou e começou a catar as pérolas, deixando cair também as lágrimas. Um completo desastre.
Com o som de descarga a senhora de oncinha saiu do reservado.
– Tome, acho que são suas – disse a senhora estendendo a mão cheia de contas e pérolas para a sereia, sorrindo. – Você está linda!
Sereia agradeceu e guardou as contas na bolsa de concha enquanto a senhora saía do banheiro e encarou o espelho mais uma vez. Secou as lágrimas com o papel toalha, desfazendo um pouco mais da maquiagem.
Era preciso encarar os fatos. Netuno não ia aparecer. Talvez devesse ir para casa e dar o carnaval por encerrado, despir a fantasia e esquecer a humilhação. Também podia ver um filme já que estava ali, colocar a lista do Oscar em dia. Uma sereia no cinema não seria nada esquisito.
Fato é que de nada adiantava ficar presa no banheiro. Tivera muito trabalho para montar aquela fantasia, precisava ser vista, se divertir, beijar na boca. Mesmo que fosse a de algum sapo e não a do desejado Netuno. Abriu a bolsa, tirou um tubinho de glitter azul e remendou as falhas na maquiagem. Tomou coragem e saiu do banheiro.
Aproveitou que estava no cinema e comprou um saco de pipoca superfaturado com bastante manteiga e queijo ralado e ganhou as ruas novamente, decidida a ver e ser vista em seu esplendor de sereia, ainda que um pouco mais decadente.
Acabou caminhando até a orla, afinal, sereias precisam de água. Decidiu seguir pelo aterro enquanto o sol ainda brilhava, apreciando a vista do Pão de Açúcar e as tartarugas que davam as caras na superfície clara da água de muitos dias sem chover. Perto de um monumento histórico, começou a ouvir uma música familiar e deu de cara com outro bloco, lotado, bem mais animado que aquele da pracinha onde Netuno supostamente a esperava.
Sereia foi recebida pelos foliões de braços abertos, ganhou chuva de confete e serpentina, recebeu elogios de rapazes de glitter e fio dental e se juntou a conhecidos de outros carnavais. Cantou a plenos pulmões o desejo de que essa fantasia fosse eterna e outros sucessos carnavalescos, dividiu latões com novos amigos e até ganhou uma nova tiara, muito mais esplendorosa que a sua, que algum folião ou entidade carnavalesca deixara aos seus pés. Ao cair da tarde, pegou o ônibus para casa com segurança e ainda plena de suas faculdades. Só quando já estava na ponte conferiu o telefone:
“desculpa, sereia, acordei mal da garganta, achei melhor ficar em casa”
Sereia não respondeu. Apenas apreciou a vista da baía, agradecendo por não ter desperdiçado seu último dia de carnaval chorando num banheiro de cinema.
E o Oscar, hein?
Fernanda Torres não venceu o prêmio de melhor atriz mas segue totalmente premiada em nossos corações. Em compensação, Ainda estou aqui conquistou o prêmio de melhor filme internacional e trouxe a primeira estatueta do Oscar para o Brasil. Orgulho nacional.
Já na categoria de melhor animação, o gatinho de Flow surpreendeu e arrebatou o primeiro Oscar da Letônia. Assisti à saga de sobrevivência e cooperação dos animais em um mundo inundado e embora os visuais sejam lindos e a mensagem necessária, não recomendo aos pequeninos. Duas crianças de três anos choraram o filme inteiro atrás de mim e não tiro a razão delas. É uma história de apocalipse climático, afinal de contas.
Recomendações
- fala sobre o privilégio e o direito à literatura. Ainda nesse tema o fala da pesquisa Retratos da Leitura.
- compartilha dicas para sobreviver a longos projetos de escrita (como uma dissertação).
- e falam do Oscar aqui e aqui, respectivamente.
Assinei o streaming da Max para assistir A amiga genial (saudades Lila e Lenu) e agora estou assistindo Girls e And just like that: mulheres jovens e sem dinheiro em busca do amor versus mulheres maduras e com dinheiro em busca do amor. Um equilíbrio divertido.
Leituras em andamento: Eu sozinha (Marina Colasanti), O último dia da infância (crônicas de Marcelo Moutinho), The complete poems and collected letters of Adelaide Crapsey (editado por Susan Sutton Smith, uma das bases da minha pesquisa no mestrado).
Últimas leituras: finde mundo (poemas de Lígia Souto) e Estado febril, poemas da querida
. Leia uma prévia na revista cassandra.O próximo encontro da Casa das Poetas vai ser no dia 31 de março com o livro Não tentar domar bicho selvagem da Isabelle Bettoni. Inscreva-se para participar gratuitamente aqui.
*Uma versão anterior foi enviada com o primeiro parágrafo faltando. Considere essa a versão oficial. Foi mal!
adorei a edição e super obrigada pela indicação!
Que fantasia linda! Adorei <3