24/07/2023
Comecei um novo diário. Isso por si só não é novidade para mim; começo um novo diário a cada seis meses. Seis meses é o tempo médio que levo para ocupar todas as páginas de um caderno A5 de espessura média. Não chego a escrever todos os dias, mas escrevo bastante nos dias que escrevo.
Mas esse novo diário é diferente. Nem era para ser um diário, na verdade. Era para ser um novo caderno de colagens, embora o atual ainda esteja na metade. A verdade é que tenho muitos cadernos e muitos papéis e desde que decidi começar a gastar meus cadernos e papéis acumulados com colagens despretensiosas, começo a olhar meus cadernos novos na estante e a definir novos propósitos para eles. Antes, seus únicos propósitos eram virar diários. Ou cadernos de poesia. Agora, podem ser cadernos de colagem também. Ou diários de colagem. O novo diário é algo desse tipo. É um caderno que ganhei de uma amiga há alguns anos e tem uma ilustração da cena final de Casablanca. Casablanca não chega a ser meu filme preferido, embora eu aprecie a obra. Então deixei o caderno ali na estante, meio de standby, mas nunca me via usando-o para os meus fins costumeiros. Até que me ocorreu usá-lo para colar ingressos de cinema, mas ficou só na ideia. Achava melhor terminar primeiro o caderno de colagens, depois passar para outra empreitada. Um caderno de colagens cinematográficas, com figuras e imagens alusivas a filmes, além dos ingressos.
Mas deitei esse plano por terra e resolvi começar a colar os ingressos no caderno, sem me preocupar com arte ou estética, apenas em colar os poucos bilhetes que encontrei em ordem cronológica. Incluí também cartões de videolocadoras há muito falidas que não tive coragem de jogar fora e então me dei conta de que precisava escrever algo sobre os filmes, sabe, justificar a presença deles ali.
Até porque os ingressos que encontrei não representam todos os filmes que vi e amei, mas todos os filmes que vi e que por acaso não me desfiz do ingresso. O filme da Barbie, por exemplo, vi e amei, mas o ingresso não tinha nada de especial, era só um pedaço de papel branco que poderia facilmente ser confundido com o recibo da pipoca, então nem pensei duas vezes antes de jogá-lo fora. Portanto, esse registro não está no meu diário. Mas um ingresso grande e vistoso de uma sessão de 2 reais no CCBB para uma mostra de Jean Luc Godard que supostamente assisti em 2015 está – embora eu não me lembre qual filme assisti na ocasião.
Porém, forçando a memória, consigo lembrar que fui a essa mostra em um encontro com um carinha cult-bacaninha que conheci no Tinder e me lembro até que eu estava usando minha saia de mescla com estampa de baleias. Mas o filme mesmo, não lembro – e nem posso dizer que era por ter trocado muitos beijos com o carinha estranho, pois éramos dois intelectuais muito interessados em cinema francês e precisávamos ter assunto para depois do filme. E ainda assim não lembro o que vi, nem se beijei o carinha nesse dia.
Perceba por esta breve e confusa anedota que esse diário funciona como uma cápsula do tempo para momentos aleatórios da minha vida que têm alguma ligação com o cinema. Como, por exemplo, o dia em que fui assistir Medianeras sozinha no Arteplex da Praia de Botafogo em 2011, talvez minha primeira experiência cult-bacaninha de ir ao cinema sozinha. Na época eu estagiava em uma editora no Cosme Velho e lia os jornais todos os dias, então me lembro de ter lido uma crítica instigante sobre o filme argentino e planejei minha ida ao cinema na sessão de 17h30, após o estágio, que acabava às 16h. Devo ter pegado o 583 ou 584 na rua Cosme Velho e descido na Praia de Botafogo, talvez errado um ponto para frente ou para trás, devido à falta de costume, e andado apressada para chegar a tempo de comprar o ingresso, uma pipoca e um mate, embora a sessão mal estivesse cheia. Lembro de me emocionar e chorar com a solidão dos personagens, tão sofridos e desejosos de conexão, tão perto e ainda tão distantes um do outro, e de pensar se em algum canto do Rio de Janeiro ou de Niterói não havia uma outra alma solitária e desejosa de conexão como eu e que me restava encontrar.
Pensando bem, a maioria dos ingressos preservados que entraram no novo diário são de sessões a que fui sozinha. Com a exceção de Dor e glória, que assisti com minha mãe no Cine Arte UFF – e conversamos bastante sobre depois; e Novembro, filme de uma cineasta amiga que me convidou para a pré-estreia com direito a acompanhante e achei por bem levar meu vizinho cinéfilo que hoje é roteirista.
Mesmo os filmes que não gostei tanto assim, como Noites alienígenas, merecem seu posto no meu caderno de memórias pelo serviço prestado: o de me fazer companhia numa tarde vazia, de me tirar de casa numa noite qualquer de meio da semana, me fazer rir e chorar, me fazer meditar.
Segunda-feira, quando escrevo esse texto e inicio esse diário, é um dia que eu normalmente iria ao cinema, pois o ingresso do Cine Arte UFF custa apenas 5 reais para todo mundo. Mas, como que para me pregar uma peça, minha disposição para ir ao cinema às segundas-feiras não anda lá muito boa. Embora a necessidade de estar comigo em um nível profundo como o de uma ida ao cinema ainda exista. Então, mesmo depois de terminar meus afazeres do dia, me vejo à deriva, sem conseguir relaxar e fazer algo prazeroso nem adiantar outras tarefas da semana. Sair de casa para o cinema nessas horas seria uma salvação, um momento de reorganizar as ideias, duas horas para ficar quietinha, sem culpa – que é muito diferente de ficar quietinha em casa, porque eu estaria fora de casa, logo, fazendo alguma coisa. A fuga perfeita.
Mas não fui ao cinema, não saí de casa, não adiantei meu trabalho, não fiz mais que o necessário para enfrentar o dia e não fiz o mínimo de lazer que me seria permitido. Mas, fiz uma colagem. Li uma revista. Comecei um novo diário. Fiz um bolo de cacau e banana sem farinha ou açúcar que não tinha gosto de tristeza. Arranjei um jeito de meditar dentro de casa, afinal. De escapar para dentro sem culpa. Ou quase sem culpa.
Relutante em encerrar as atividades do dia, fecho meu diário cinematográfico e encaro a imagem de Rick e Louis na capa do caderno e me lembro da primeira vez que assistir Casablanca. Aluguei o DVD em uma videolocadora cult chamada O cinéfilo, um ícone da resistência das locadoras de Niterói – que posteriormente virou uma cafeteria com jogos de tabuleiro, que também fechou. Não gostei do final na época porque eu tinha 17 anos e acreditava em finais felizes; mas outro dia, por um motivo que já me escapa, revi a cena do reencontro de Ilsa e Rick, com Sam tocando As time goes by ao piano, e fiquei arrebatada pela beleza daquele reencontro agridoce. E finalmente me convenci de que todo aquele amor só faria sentido com a despedida. E achei bonito pra caramba.
05/08/2023
Segunda-feira fui ao cinema. Fui caminhando pela orla até o Cine Arte UFF, tirando fotos da lua cheia nascendo no crepúsculo. Comecei a assistir ao documentário Clarice – A descoberta do mundo, que conta com depoimentos de amigos e parentes da autora e trechos da entrevista ao MIS que saiu no podcast 451mhz em julho e já mencionei aqui.
Infelizmente deu pau no arquivo do filme e ficamos sem os 25 minutos finais. Voltei para casa ouvindo a entrevista no podcast pela terceira vez. Depois de responder a todas as perguntas, Clarice pergunta aos seus interlocutores que valor terá “tudo isso” (o depoimento, sua obra) depois que ela morrer. Muita coisa, respondem, ao que ela não parece se convencer. É. Muita coisa.
O plano era perder o controle e eu perdi o controle do plano. Uso meus próprios versos para justificar a carta de hoje. Teci um grande ensaio em duas partes para este domingo e o próximo, cheguei a agendar a carta, para na última hora desistir e mudar tudo que eu ia dizer. Semana que vem, talvez. Alguns textos são como massa de pão, precisam descansar.
O que ouvi essa semana
Episódios aleatórios do podcast Página Cinco e 451 mhz, incluindo a primeira parte da entrevista de Clarice Lispector (pela terceira vez). Esses podcasts literários têm sido minha melhor companhia nas caminhadas semanais.
O álbum Poetic Collage, da cantautora independente
, que mora em Lisboa e veio ao Brasil para uma curta temporada, se apresentando em São Paulo nesse domingo. Ela também escreve aqui no Substack e eu tenho o privilégio de ler seus textos em primeira mão para vertê-los para o inglês.
Forte identificação com esse texto pois guardo numa caixinha praticamente todas as entradas de cinema desde 1997.