Depois de muita chuva as praias da Baía de Guanabara ficam impróprias para banho. Sem poder dar meus mergulhos na Boa Viagem, recorro a outro refúgio na região, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói.
Inaugurado em 1996, o MAC foi a primeira obra de Oscar Niemeyer projetada para a cidade sorriso. De lá pra cá, Niterói se tornou a segunda cidade no mundo com o maior número de obras de Niemeyer, atrás apenas de Brasília. Do Centro à Boa Viagem, temos o Memorial Roberto Silveira, o Museu da Ciência e Criatividade, o Teatro Popular, o Caminho Niemeyer, o Centro Petrobras de Cinema, ocupado pelos cinemas e restaurantes do Reserva Cultural e pela multimídia Sala Nelson Pereira dos Santos, o MAC e o MACquinho, coroando o trajeto que tem a melhor vista para o Rio de Janeiro – o que não é nenhum demérito. E ainda tem a estação das barcas de Charitas, um pouco mais distante, mas ainda na orla da Baía de Guanabara.
Venho ao MAC desde criança com meus pais, a escola, amigos, mas muitas vezes, sozinha. Não me lembro bem da primeira vez que visitei o museu que parece um disco voador – ou uma flor, na visão do arquiteto. A lembrança mais antiga que tenho no museu é de guiar meus avós paternos por uma exposição de jogos concretos e neoconcretos e arte cinética, cujo maior atrativo para uma criança de 8 anos era a arte que se podia tocar. Digo guiar porque eu já tinha visto a exposição junto com a escola, mas a lembrança que ficou foi a de revisitá-la com meus avós de Volta Redonda que eu não via todos os dias.
Dou um salto para maio de 2014, visitando pela primeira vez o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, popularmente conhecido como o museu do olho. Na exposição de Abraham Palatnik, reconheço a arte cinética que me fascinou naquela primeira visita significativa ao MAC.
Mas outra coisa me chama a atenção no museu: as formas femininas desenhadas pelo arquiteto na fachada. Os mesmos corpos que o arquiteto diz inspirar suas curvas de concreto. Achei tão bonito que comprei uma bolsa de lona e um ímã com a figura feminina estampada.
Salto para janeiro de 2024. A praia da Boa Viagem não está própria para banho, então depois da minha caminhada pela orla entro no museu para me refugiar do calor, em primeiro lugar, e em segundo, para me inspirar a escrever alguma coisa. A semana foi morosa, senti o calor cozinhar minhas ideias e não avancei muito nos textos que ensaiei. Uma mudança de cenário era bem-vinda.
No salão principal e no mezanino, visito a exposição coletiva Arte e Processos de Criação, com curadoria de João Wesley de Souza. Esculturas, instalações, fotografias e poucas pinturas compõem o espaço, agrupadas por temas. Corpo, memória, outros que não registro. Não me detenho muito nos textos expográficos, me deixo levar pelas obras. As que mais me chamam atenção são, curiosamente, de mulheres.
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Na varanda, resisto à tentação de me deitar nos bancos e olhar a vista para me debruçar sobre a exposição coletiva Ah, eu amo as mulheres brasileiras!, com curadoria de Luiza Testa. Com obras de artistas mulheres de todo o Brasil, a exposição critica a objetificação e as violências sofridas pela mulher brasileira dentro e fora do país, sempre alvo de olhares cobiçosos de nossos corpos. Uma instalação com sapatos vermelhos acorrentados e a frase “Fica em casa” me lembra de Julieta Hernández, artista e ciclista brutalmente assassinada por se atrever a não ficar em casa, a ser livre e circular com seu corpo pelo mundo. Eu não conhecia Julieta e é cruel que eu só saiba quem ela foi a partir da violência sofrida e que mobilizou centenas de mulheres em manifestações pelo país e no mundo. Quantas mulheres só ganham manchetes de jornal por causa das violências que sofreram?
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Evito falar de assuntos sobre os quais não me sinto qualificada o suficiente para opinar – política, religião. No entanto, me sinto qualificada como mulher para me indignar diante da violência sofrida cotidianamente por outras como eu. Não vou citar mais casos, basta acompanhar o noticiário: não há um dia sem um caso de violência contra a mulher. Se não gosta de jornais, pergunte a uma mulher. Todas temos histórias para contar.
Bebendo cerveja com amigos na Cantareira essa semana, conversávamos sobre os tempos de faculdade e um amigo me contava de vezes em que bebeu demais e ficou desamparado na rua sem nada de mal lhe acontecer. Ele reconheceu o privilégio masculino quando comentei que nunca tive coragem de me estragar a esse ponto, mesmo tão perto de casa. Conto nos dedos as vezes em que me vi vulnerável e em todas passei por algo desagradável.
A nós mulheres não é dado o direito de nos divertir sem um pé atrás. Estamos sempre de olho na hora, de olho no entorno, enxergando rotas de fuga, andando apressadas, segurando a respiração. Tenho um amigo que sempre chama minha atenção para andar mais devagar, porque não consegue acompanhar meu ritmo. Ele não entende a necessidade que tenho de acelerar o passo, pois quanto mais rápido eu ando, mais rápido eu chego à (falsa) segurança de um espaço fechado. Outro amigo, durante o apagão da Flip em novembro, me convenceu a caminhar pelas ruas escuras e enlameadas como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não teve medo das vielas sombrias nem por um segundo.
Gostaria de ter a confiança dos homens heterossexuais. Poder caminhar por qualquer espaço, a qualquer hora do dia, desacompanhada, embriagada e ter a certeza de nada me acontecer. No máximo roubarem o celular, nada muito grave. Mas ser mulher neste país e ser mulher deste país significa para muitos homens que nossos corpos estão disponíveis – antes fosse só para olhar. Somos musas, paisagens, objetos para prazer e reprodução, mas nunca donas de nós mesmas, nunca totalmente livres. O medo sempre nos acompanha.
Mesmo com medo, sigo caminhando. Como lembra o cartaz, não vai dar tempo de viver outra vida e ficar parada não muda nada. Caminhando pelo menos se chega a algum lugar.
MAC
Endereço: Mirante da Boa Viagem, s/nº – Boa Viagem, Niterói
Visitação: terça a domingo das 9h às 18h (entrada até 17h30). Grátis para todos às quartas-feiras.
“Arte & Processos de Criação”: em cartaz até 25 de fevereiro no Salão Principal e no Mezanino
“Ah, eu amo as mulheres brasileiras”: em cartaz até 25 de fevereiro na Varanda
Recomendações da semana
Para ler 📚
A luz do abismo, de Armando Martinelli.
“Laundry & Taxes”, poema do meu livro Amor Recreativo publicado no portal da Fazia Poesia.
Plaquete Laboriosa Produções Poéticas do coletivo de mesmo nome de autores de Niterói.
O último texto da Adelaide Ivánova na
sobre viajar sozinha.
Para ver 📽📺
Frances Ha, no MUBI
Minha irmã e eu, no cinema
Daisy Joens and the Six, no Prime Video.
Para ouvir🎶
A playlist com Selo Valekers de qualidade que a
montou a partir das indicações do Prêmio Valekers Melhores do Ano 2023
Agenda📅
Segunda-feira, 29/01, 20h: o clube de leitura Casa das Poetas faz seu primeiro encontro online de 2024! O livro do mês é Breve ato de descascar laranjas da Bianca Monteiro Garcia e durante o encontro vamos ler poemas e bater um papo com a autora sobre o seu processo de escrita.
É grátis, inscreva-se aqui.
Casa das Poetas
A Casa das Poetas é uma iniciativa de
, Luiza Leite Ferreira, Marcela Alves, , Renata Ettinger e Thaís Campolina. Durante nossas conversas literárias surgiu a ideia de termos um clube para ler só poesia contemporânea feita por mulheres. Começamos nossas atividades em 2023 com uma super parceria com a Casa Inventada (e daí o nome Casa que nos abraçou e a gente não solta mais). Foram 12 livros lidos e 12 encontros realizados. Agora, começamos 2024 de casa “própria”. Saiba mais sobre o clube aqui.
Queria ter ido nessa expo contigo. Gostei do teu relato e compartilho dos mesmos medos e manias para a falsa proteção... Um dia, quem sabe... Um mundo melhor. Beijo.
Estudei em Niterói no final de década de 1980 e, claro, não tive olhos e recursos para apreciar a vida cultural local. Morava no Rio. Fico feliz por acompanhar seus escritos e ver que por aí se ampliou a oferta de equipamentos culturais.
No ano passado visitei minha irmã, que à época morava em Maricá e estive numa das praias de Niterói. Gostei muito! Não tivemos foi tempo de explorar a vida cultural mais sofisticada, o que demandaria um "tempo de viajante".
Quanto à insegurança das mulheres é de se lamentar. Tenho filhas e sei de perto o quanto elas se viram para não correm risco. Quantas lutas ainda a travar!
Enfim, sempre bom ler sua news, Luiza!!