Pelo telefone 📞
... acontece todo tipo de conversa. Um ensaio sobre esse meio de comunicação e as suas possibilidades.
O dia inteiro o telefone toca. Largo o que estou fazendo para atender. Do outro lado, parece que escuto alguém. Digo alô. Alô, alô, alô. Silêncio. Desligo. O ciclo se repete.
Eu sei de onde vêm essas ligações. Grandes call centers espalhados pelo país querendo me cobrar ou vender alguma coisa. O que me interessa não é saber quem está me ligando. É por que eu ainda atendo.
Houve um tempo, não muito distante, em que o telefone tocava e eu corria para atender porque podia ser importante. Ou mais importante ainda, podia ser alguém querendo falar comigo. E essa conversa podia ser rápida ou devagar. Podia ter um objetivo ou ser apenas um papo furado sem hora para acabar. Atender o telefone era abrir uma janela para a mente de outra pessoa a quilômetros de mim.
Nem sempre foi prazeroso falar ao telefone. Uma tarde quando era adolescente me lembro de atender 3 vezes o chamado de um senhor chamado Gerson que queria falar com uma fulana, cujo nome não lembro — digamos que fosse Abigail. Três vezes ele chamou, “Abigail?” e eu respondi, fatigada já na terceira vez “Não tem nenhuma Abigail aqui”. Na terceira vez ele quis ter certeza, ditou o número de Abigail que tinha anotado, e de fato batia com o meu número. Então um pensamento novo cruzou sua mente e ele perguntou se eu estava em Araruama e eu respondi que não. Matamos a charada: Gerson acertou o número, mas confundiu os DDDs. Nos despedimos com alívio, eu e Gerson, sabendo que nunca mais falaríamos.
Vocês se lembram de quando surgiu o DDD? E da propaganda dos meninos bochechudos com roupas coloridas à la Huguinho, Zezinho e Luisinho explicando como fazer ligações interurbanas em 1999? Segue abaixo para quem tem memória fraca.
Em 2000 ou 2001 minha mãe comprou um celular, um tijolão da Ericson. Lembro de sair da pequena loja da ATL no quarto andar do Plaza Shopping memorizando o número do celular novo, como já tinha memorizado o telefone de casa. Era muito importante ter os números memorizados para poder ligar em uma emergência. Celular era para isso, afinal. Antes do celular, minha mãe teve um beep/pager. Eu sabia ligar para a central e pedir para enviarem um recado para ela, que me ligava de volta quando pudesse. Nunca precisei entrar em contato por motivos de emergência, mas eu gostava de saber que podia.
Houve um tempo em que, mesmo aderindo ao telefone sem fio e à secretária eletrônica, era importante manter também um telefone de fio, preso à parede. Assim, quando faltasse luz, ainda se poderia fazer ou receber ligações, já que não dependiam de eletricidade para funcionar. Às vezes no silêncio de uma noite de blecaute, o beep de um telefone dando linha pode ser muito reconfortante. E nada melhor que conversar com outra pessoa para passar o tempo.
Hoje todos os telefones fixos são sem fio, quando existem; logo, necessitam de energia. E mesmo se não precisassem, o cabo de telefonia está conectado ao roteador/modem de internet que só funciona ligado na tomada. Ou seja, quando acaba a luz, só o celular (carregado) salva. Nada é realmente wireless, se você parar pra pensar.
O telefone costumava ser tão importante numa casa que era comum ter um móvel só para ele nos anos 60/70. Era uma mesinha – geralmente com uma gaveta para se guardar a lista telefônica, uma agenda de telefones, e um bloco com caneta para anotar recados – acoplada a uma cadeira para você se sentar confortavelmente enquanto falava ao telefone.
Um dos meus sonhos de infância era ter um telefone de gancho sofisticado, com um gancho dourado e os bocais brancos e largos como se feitos de mármore ou marfim, apoiado sobre uma base rococó delicada, do tipo que só se encontra em museus ou na feira de antiguidades da Praça XV.
Mas também quis ter um telefone em forma de boca ou de Garfield. Minhas primas mais velhas tinham um telefone do Garfield no quarto. Não tinha coisa mais adolescente raiz do que isso.
Na adolescência, eu tinha os telefones de todas as amigas e colegas de turma anotados na agenda. Depois de conversar o dia todo na escola, não era incomum que passássemos também alguns minutos no telefone quando em casa, mesmo sem ter assunto. Sempre se arrumava assunto. Éramos pré-adolescentes, era isso o que devíamos fazer segundo os filmes da sessão da tarde. Eu também tinha o telefone do garoto que eu gostava e ele tinha o meu. Nunca me esqueço da primeira e única vez que ele me ligou: para dizer que gostava da minha amiga e pedia que eu passasse o recado. Meu mundo caiu. Mas transmiti o recado.
Em 2003 o MSN Messenger substituiu as minhas conversas por telefone e era uma emoção toda especial ficar online e ver quem estava online também e vinha falar com você. Quer dizer, escrever para você. Foi quando começamos a usar emoticons (só depois os chamaríamos de emojis) para nos comunicar e sons polifônicos para sacudir uma janela de conversa e chamar a atenção do interlocutor. Às vezes sinto falta dessa função nos aplicativos de conversa atuais. Mesmo que já tivesse celular nessa época, ele servia apenas para jogar o jogo da cobrinha ou para fazer e receber ligações dos meus pais quando estivesse na rua — o que era bem raro de acontecer.
Antes de ter celular, na verdade, eu tive um cartão telefônico. Sucessor das fichas de orelhão, o cartão era pré-pago (acho?) e servia para fazer ligações em orelhões públicos. Mas dava para ligar também mesmo sem cartão, a cobrar, bastava usar o prefixo 9090. Eu fiz algumas ligações para a minha mãe no orelhão dos fundos da igreja do bairro, onde fazia catequese, só porque eu podia. E na primeira viagem de adulta que fiz sozinha, com a faculdade, para um congresso de estudantes em Fortaleza, lembro de ligar para casa do orelhão do campus universitário porque as tarifas de interurbano para celular eram muito caras.
Na faculdade o telefone voltou a ser um instrumento excitante. Passei madrugadas conversando com um colega de turma num flerte infinito. Depois, o telefone virou instrumento de trabalho nos meus primeiros estágios e passei a tremer ao seu toque. Quase diariamente eu atendia ligações de jornalistas pedindo contato de professores da universidade para entrevistas. Depois, foi o contrário: eu é que tinha que ligar para os jornalistas oferecendo releases e livros de cortesia em troca de entrevistas com autores da editora em que estagiei. A comunicação por e-mail eu fazia bem, mas as ligações me faziam suar frio. Uma coisa era conversar com amigos, outra completamente diferente era falar com estranhos.
Mas, de alguma forma, superei o medo do telefone. Maturidade, sim, mas necessidade também. Aprendi a fazer pedidos de delivery, marcar consultas e pedir informações com desenvoltura. Apesar de o WhatsApp ter dominado nossas comunicações, há pessoas que ainda preferem a comunicação síncrona e por voz do telefone, como meu avô — embora eu ande um tanto negligente. Desculpa, vô. Prometo tentar compensar.
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Hoje o telefone é praticamente um canal de serviços. Raramente recebemos ligações de gente querendo conversar ou trazer uma informação relevante. Geralmente ligam só para vender assinaturas de jornal (outra coisa ultrapassada, infelizmente), pedir doações para caridade, oferecer cartões de crédito ou cobrar dívidas. Ou pior, aplicar golpes. Mas há alguns serviços e comunicações que dependem muito do telefone – e de quem atende.
Há um tempo atrás saiu uma notícia de que as doações de medula óssea estavam em baixa, simplesmente porque as pessoas não atendem mais ao telefone ou não atualizam os cadastros. As pessoas fazem o esforço de ir ao INCA, tirar sangue, se cadastrar no Redome, mas quando dá match com um paciente que precisa, não conseguem ser contatadas para concretizar a doação e salvar uma vida.
O Dia Mundial do Doador de Medula Óssea é comemorado todo ano no terceiro sábado de setembro, mas você pode se cadastrar como doador no Hemocentro mais próximo em qualquer dia. Saiba mais aqui.
Pelo telefone, pessoas pedem ajuda ao Centro de Valorização da Vida todos os dias pelo Ligue 188. Segundo o relatório do 2º trimestre de 2023, foram atendidas cerca de 650 mil ligações só de maio a junho. O CVV conta atualmente com pouco mais de 2500 voluntários.
Setembro é o mês mundial de conscientização e prevenção do suicídio. Vi poucas publicidades sobre o Setembro Amarelo, só uma esquete de humor ridicularizando as ações corporativas vazias que supostamente dominam esse mês. As pessoas têm medo de falar sobre suicídio. Ninguém quer dizer a coisa errada. Mas, pesquisando no site do CVV, descubro que falar é a melhor forma de prevenir o pior. Descubro que o suicídio é uma forma extrema de sanar uma grande dor. Ninguém quer encontrar essa saída, de verdade. Mas é preciso acabar com a dor. Uma forma alternativa de diluir a dor e torná-la suportável é falar sobre ela. Colocá-la em palavras. Colocá-la para fora. Uma única conversa pode não dar conta de saná-la; mas pode ser um começo. Um começo de várias conversas que levem a um tratamento psicológico adequado e, com esperança, ao fim do sofrimento. E tudo pode começar com um telefonema.
Pelo telefone eu tive longas conversas com amigos que moram distante enquanto caminhava pela praia e eles faziam a feira ou cozinhavam, assistimos filmes juntos, como se estivessem ao meu lado. Pelo telefone eu ouvi as mais lindas declarações de amor e as coisas mais cruéis — às vezes de uma mesma pessoa. Pelo telefone também levei um pé na bunda e ouvi a notícia de que seria irmã mais velha. Pelo telefone avisei ao meu pai que a mãe dele não passaria daquela noite.
Pelo telefone transmitimos notícias boas e ruins, contamos e ouvimos histórias, estabelecemos uma comunicação instantânea com a pessoa do outro lado da linha. Pelo telefone, ouvimos. Acolhemos. Somos ouvidos, somos acolhidos. O telefone (ainda) é um meio de conexão.
O telefone continuou tocando até o fim do horário comercial. Atendi todas as vezes e todas as vezes encontrei o silêncio. Não sei que tipo de notícia gostaria de receber para valer o esforço de ir até a sala, tirar o telefone sem fio da base, colocá-lo de volta em seguida para não descarregar. Mas sigo atendendo às ligações que me chegam pelo fixo e pelo celular, porque nunca se sabe quando alguém pode estar ligando só para ouvir a sua voz.
Links 💻
Enquanto procurava uma imagem da Meg Ryan falando ao telefone em algum filme da Nora Ephron, encontrei esse texto bem legal da época da pandemia sobre os meios de comunicação que a roteirista e diretora retrata em seus filmes para estabelecer conexões entre seus personagens.
Esse texto saudosista sobre o móvel do telefone, chamado de conversadeira em Portugal e, por aqui, de secretária.
Coletânea de poemas meus que saíram na Fazia Poesia essa semana
Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome)
Ok, eu não imaginava esse plot twist/momento utilidade pública no final, mas fez total sentido. Eu escrevi um dia desses sobre os cartões de orelhão e outros itens de colecionador, me bateu a mesma nostalgia!
Em algum momento do ano 2000 meu avô foi a uma loja da ATL no Plaza e comprou um tijolao da Ericsson pra mim. No dia do meu aniversário, levei pra escola (pra me exibir um pouquinho, rs) e quando estava no ônibus voltando para casa recebi várias ligações dos meus tios. Minha pediu que eles só ligassem depois da aula. Adorei essa viagem no tempo, e a coincidência de um tijolao comprado no Plaza shopping.