Niterói, 15 de abril de 2023
Querida Clarice,
Chove enquanto te escrevo. Uma chuva fria, que cai alternada entre pancadas bruscas e ritmos suaves. Me desculpe não ir ao seu encontro nesta tarde vazia. Como eu disse, chove muito e não me animo a sair da toca.
Lá fora, antes mesmo de chover, a rua já estava inundada. Um bueiro entupido no meio do asfalto vaza esgoto há dias sem parar e um cheiro de matéria podre diluída em água invade o quarteirão todo, um cheiro até bem parecido com o da chuva e agora chuva e esgoto se misturam num córrego correndo lá embaixo. E às vezes passa um carro em alta velocidade nessa rua alagada jogando a água para a calçada e é como se fosse uma onda quebrando na praia. Então esqueço que estou em casa e imagino que estou na beira do mar, que a essa hora deve estar ressacado e pintado em tons de chumbo. Me pergunto onde se escondem as tartarugas nessas horas ou se nada muda para elas debaixo d’água então me lembro que a primeira vez que vi as tartarugas no mar foi num dia de céu cinza e mar chumbo.
Me lembro de uma tarde que choveu muito, era primavera ou verão e eu tinha 16 anos. Gostava de voltar da escola a pé, um percurso de 4km. Não é que gostasse do exercício, na verdade o hábito começou num dia que esqueci o dinheiro da passagem de volta ou gastei na cantina da escola com alguma guloseima e não tinha nenhum amigo para pedir emprestado então minha única opção foi voltar a pé e aí foi um caminho sem volta. Sempre que eu queria pensar eu voltava caminhando, variando os percursos, me perdendo na tarde.
Mas nesse dia, eu estava no meio do caminho quando caiu a chuva, não era chuva pouca, era uma chuvarada, uma pancadona de chuva e eu não estava preparada, minha blusa branca do uniforme ficou encharcada, transparente, grudando na pele e os pontos de ônibus estavam lotados, não passava ônibus algum, não havia táxis nos pontos e tudo o que se podia fazer era esperar sob uma marquise então eu decidi andar na chuva mesmo, pela praia.
O céu na praia estava amarelo e carregado e eu nunca tinha visto um céu amarelo de tempestade tão cheio de nuvens pretas e chuva grossa e trovões estrondosos. Era lindo de se ver. Passei pelo trecho estreito do calçadão onde o mar avançava com força para a pista e levei um banho e constatei que o mar na ressaca tinha essa cor de chumbo.
Querida Clarice, desculpe invadir seu repouso com esta carta e perdoe o egoísmo de minhas palavras. Não escrevo para saber de ti, mas para me sentir menos sozinha, nessa tarde chuvosa em que recusei companhias e me recusei a ligar para a única pessoa cuja voz eu queria ouvir e estou aqui, te escrevendo, porque sei que você entende melhor que ninguém a necessidade de expressar nosso turbilhão interno no papel.
Querida Clarice, não espero resposta – nem poderia –, não espero ajuda, sei onde encontrar ajuda se fosse isso o que eu buscasse, mas não é isso, não é nada disso, o que eu preciso eu só encontro quando risco febrilmente o papel tentando fazer sentido do que sinto, do que penso, do que desejo. O que é, Clarice, o que é isso que tanto anseio e não encontro em lugar algum, em pessoa alguma? De que tipo de aprendizagem eu preciso, Clarice, para viver os prazeres da vida?
Não tardei a me contradizer e já te peço conselhos e respostas que você nem ninguém pode me dar. Dentro de mim uma vozinha diz que o que eu busco encontrarei dentro, mas não sei olhar para dentro, ou olho tanto que não vejo nada, não encontro nada, ou melhor, tanta coisa que é o mesmo que nada, nada que preste, parece.
Um amigo esteve aqui e me perguntou por que eu escrevo e publico livros, mas de uma forma tão direta, abrupta, que não dei resposta que me satisfaça. Ele perguntou se eu almejava ganhar dinheiro e viver disso, e embora eu queira, claro que quero, não é por isso que escrevo e publico. Respondi então que era para ficar famosa, para compartilhar o que escrevo com outras pessoas que podem se identificar, e porque eu odiaria morrer com centenas de textos escondidos e esquecidos debaixo da cama, por isso quero publicar tudo, mas também quero ser lida. Sobretudo, ser lida.
Na verdade, penso que escrevo para ser amada, embora os que me amem não me leiam. Escrevo para encontrar companhia na palavra e entre os que me leem, para me sentir menos sozinha. Escrevo porque a vida não basta e quero ultrapassar a minha existência. Escrevo para me tornar imortal e ser sempre lembrada, e isto só o tempo dirá, mas eu tenho essa pressa de prever o futuro, quero ter controle de tudo o que vai me acontecer, só assim poderei relaxar e esperar. Enquanto não sei o que pode acontecer, não relaxo – não relaxo nunca.
Gostaria de dizer que escrevo para ter controle, se não da minha vida, das minhas narrativas, mas o problema é justo esse, eu não tenho controle nem sobre o que eu escrevo. Isso começou como uma carta e terminou como uma confissão. Perdão, Clarice, perdão. Eu só queria te escrever porque pensei que me entenderia – e assim eu me entenderia. Buscava apenas companhia para passar essa tarde chuvosa de melancolia.
Obrigada, Clarice.
Sua,
Luiza
Na semana em que escrevi esse pedido de socorro texto eu tinha ido ao lançamento de uma antologia de cartas para escritores que já não estão mais aqui, de um grupo de escrita da professora e autora Ninfa Parreiras. Fiquei inspirada a escrever uma carta para uma das minhas autoras preferidas e deu nisso.
O que eu escrevi essa semana
Como foi Dia Nacional do Escritor e Dia internacional da mulher negra, latino-americana e caribenha, fiz uma lista de 7 escritoras negras brasileiras que você precisa conhecer lá no blog.
O que eu vi essa semana
O filme da princesa Peach, quer dizer, Super Mario Bros. O Filme, na repescagem das férias escolares do Cine Arte UFF
Oito mulheres e um segredo, menos pelo filme e mais para ver um monte de mulher bonita e talentosa reunida
A segunda temporada de Ozark na Netflix
O que ouvi essa semana
A segunda parte da entrevista de Clarice Lispector no podcast 451mhz enquanto editava essa news neste mesmo domingo de manhã em que você a recebe.
Na última quinta-feira, tive o prazer de conversar sobre o meu livro É na cacofonia que eu me escuto com o público do clube de leitura Casa de Poetas. Vários amigos apareceram para perguntar sobre as minhas referências e inspirações para os poemas e não vou mentir que amei estar sob os holofotes e falar dos meus processos.
Se você é meu amigo e recebe essas cartas e ainda não leu meu livro, ta esperando o quê? Corre que daqui a pouco eu já lanço outro – os links para compra estão aqui, mas você sempre pode comprar direto comigo, só me dar um alô nas redes.
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!Que triste — ser— Alguém!
Que pública — a Fama —
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as almas da Lama!– Emily Dickinson, tradução de Augusto de Campos
Diferente da querida Emily Dickinson que escreveu praticamente em segredo por toda a vida, eu não tenho vergonha de me escancarar: escrevo sobre minhas paixões, meus pés na bunda, meus tropeços na vida, meus banhos de mar, minhas filosofias de botequim – e me exponho todinha na internet. Escrevo para me colocar no mundo, para marcar território, dizer a que vim. Talvez o que eu escreva seja um monte de besteira, mas sempre vou achar alguém que me queira (ler).
Que lindeza essa carta e tão belas as suas percepções sobre a chuva, a solidão, a escrita. Adorando poder te acompanhar aqui!
Estou ouvindo a segunda parte da entrevista, e como Clarice era incrível. Adorei tua carta. ❤️