28.01.25
É terça-feira. Depois de muito tempo diante do computador, meu corpo pede movimento, vento, outro chão para pisar, sons diversos para povoar os meus ouvidos já tão habituados ao silêncio do quarto. Abandono a rotina, abandono as responsabilidades e vou para a rua com um livro na bolsa.
Decido ir pela praia e ganho o vento fresco que minha pele pedia enquanto com os olhos procuro um banco confortável para me assentar. Passo por vários bancos ocupados e quiosques com cadeiras vazias: um quiosque pet-friendly, outro kid-friendly, por fim me estabeleço perto do quiosque onde os idosos se reúnem de manhã para jogar cartas, damas e dominó. E então encontro um banco vazio, de lado para a vista do Pão de Açúcar e sob uma amendoeira frondosa, o mesmo banco onde marquei um encontro aos 16 anos. Começo a ler.
Percebo que me assentei em um território disputado. Nem 5 minutos e uma moça suada pede para se sentar ao meu lado para respirar antes de seguir com a corrida. Duas páginas depois um casal apoia os pés no banco para apertar os cadarços dos tênis e discutir o itinerário da corrida. Mais duas páginas depois, duas amigas estacionam suas bicicletas compartilhadas ao meu lado para fazer um curativo no pé de uma enquanto a outra repousa um pouco sentada e ambas constatam no aplicativo da bicicleta que ultrapassaram o limite gratuito. Reclamam do mau estado de conservação das bicicletas que estão em nossas vidas há apenas seis meses e ensaiam uma partida se afastando um pouco do meu banco, mas não tanto. Por um momento parecem não saber se vão ou ficam. Por fim, partem.
A hora dourada ilumina as páginas do meu livro que descreve cenas cotidianas sob o olhar atento de uma escritora solitária que, assim como eu, gosta de registrar o que é simples, banal, sem importância para o mundo externo, mas que tornam a experiência da vida um tanto mais especial porque são registradas sob as suas lentes, as suas palavras. Inspirada por ela, escrevo esse relato de uma tarde lendo (tentando) no calçadão da praia e aprendo que não há lugar para os leitores aqui. A praia é dos atletas. E dos cães, que já vieram cheirar meu banco três vezes.
Mas, resisto. Sigo minha leitura e minha escrita registradora imperturbada. Gostaria de prometer que vou fincar raízes nesse banco e ler aqui todos os dias no mesmo horário para marcar meu território, mas estou sempre criando novos hábitos que nunca chego a cumprir.
Além dos cães, três formigas já escalaram as minhas pernas e desconfio que a natureza tem um complô com os atletas, querendo me expulsar da praia; ou está me punindo por não admirar sua bela criação e voltar os olhos apenas para as páginas desse caderno e desse livro, restos mortais de uma árvore como a dona da sombra que me abriga.
A luz dourada se esvai, o vento se intensifica. Sinto que é hora de deixar a leitura e a escrita e sentir o vento, pisar o chão, movimentar o corpo, dar um tempo das palavras e registrar o mundo com os olhos.
Marina Colasanti partiu no dia 28 de janeiro de 2025 aos 87 anos. Uma vida bem vivida, me parece de longe. Uma família bonita, uma carreira prolífica na literatura, conquistada não sem esforço. Levou 5 anos para encontrar quem publicasse seu primeiro livro, Eu sozinha, o livro que eu decidi ler no calçadão no dia de sua partida e que me inspirou a escrever esse texto. Um livro que, nas palavras do prefaciador, Millôr Fernandes, ele não gostaria de ter escrito, tamanha a “singeleza de uma sinceridade que não pode ser calada, uma profundidade da qual não se volta, uma visão total da vida tão densa e tão precária, tão dorida e verdadeira” (2018, p. 12).
E nada mais é que um relato de uma vida, ou do que ela guardava da vida até aquele momento de seus vinte e poucos anos, imigrante, órfã de mãe, trabalhando em um jornal. Fragmentos, memórias, a partida do país natal, as paisagens da Itália, a disposição dos móveis no apartamento, como a escrita lhe chegava, a vida dos vizinhos, o ambiente da redação, um mergulho no rio. Coisas que se vive e observa e muitas vezes não se narra, mas ela decidiu contar em textos breves e não lineares que podiam ser crônicas – ou cartas de uma newsletter – mas são um projeto único e total, um vislumbre de quem ela foi até ali. Na apresentação da edição de 2018, Marina escreveu: “O que desejava, através dessa estrutura, era mostrar que a solidão se constrói desde o início, estejamos ou não acompanhados, e que desde o início nos acompanha.” (p. 10)
O livro foi um presente da minha mãe no meu aniversário de 30 anos, em outubro de 2020. Depois de almoçar num restaurante arejado e deserto perto de casa, visitamos a livraria ao lado igualmente deserta, de máscara, e escolhi este livro de Marina Colasanti de presente muito pela temática solitária daquele tempo; mas, como sempre tinha outros livros na fila, acabei deixando-o para depois. E o depois é agora, cinco anos mais tarde, pois nunca é tarde para aprender a beleza de estar sozinha.
Uma ideia toda azul foi meu primeiro livro de Colasanti e alimentou a minha imaginação por anos e anos. Como contos de fada podiam não ter finais felizes? Como alguém podia escrever sobre princesas e castelos no mundo moderno? Como aquelas histórias podiam ensinar lições tão duras?
O conto que nomeia essa coletânea é um que me assombra e ao qual volto de tempos em tempos. Conta sobre um rei que teve uma linda ideia, toda azul, que o fazia muito feliz. Mas ele tinha tanto medo de compartilhar essa ideia com o mundo, que acabou trancando-a em um lugar distante, reservado, e aos poucos a esqueceu. E quando decidiu voltar a ela, tanto tempo depois, já não tinha mais como desfrutá-la, pô-la em prática.
Quantas ideias azuis e perfeitas não deixamos de lado por medo e acabam perdendo o brilho na escuridão da masmorra? Que lição terrível de se aprender aos dez anos. Por isso estou sempre revisando essa lição, para não deixar escaparem-me as ideias, tampouco guardá-las tempo demais na gaveta, sem uso. Escrevendo, mesmo quando não muito certa de onde quero chegar com isso.
“Mas posso escrever. Isto, só me dá prazer. Subo no meu tapete mágico, e parto. O tempo não está perdido, o espaço é bom, esqueço o telefone. Parece haver tanto por trás de cada coisa que as palavras buscam; e eu escolho minhas palavras com amor, docemente atenta, para enfileirá-las, pontos de uma longa costura.” Colasanti, 2018, p. 16[1]
Fiquei tão tocada pelo contexto da citação acima, tão familiar com a forma como gosto de passar meus domingos e planejar a escrita dessas cartas, que me gravei lendo o texto inteiro, que corresponde às páginas 15 e 16 do livro Eu sozinha. Espero que gostem também.
[1] COLASANTI, Marina. Eu sozinha. 2ª ed. São Paulo: Global, 2018.
Mais Marina Colasanti
Mais de 100 histórias maravilhosas, Global (2015). Reúne todos os volumes de contos publicados até 2015
Quando a primavera chegar, Global (2023). Contos inéditos (ainda não tenho, aceito ganhar de presente)
Marina Colasanti: entre a sístole e a diástole, documentário familiar elaborado pela filha, Alessandra Colasanti
Site oficial da escritora, onde é possível ler várias crônicas e alguns contos
Rodapé
No dia em que escrevi o texto do calçadão, fui assistir Meu bolo favorito (2024), filme iraniano em cartaz, achando que seria uma linda história de amor na terceira idade. É uma linda história de amor na terceira idade. Mas é um filme de drama. É também um filme sobre a solidão e a beleza de ter com quem compartilhar os pequenos prazeres da vida. Saí desidratada mas recomendo, 10/10.
Faltam 26 dias para o carnaval (começa antes da terça). E exatamente um mês para descobrir se Fernanda Torres vai ganhar o Oscar de melhor atriz. E faltam 16 dias para o próximo encontro da Casa das Poetas, sobre o livro da Milena Martins Moura semifinalista do Jabuti em 2024, O cordeiro e os pecados dividindo o pão. Inscreva-se aqui.
Ler na rua também é um exercício e tanto. É, ao mesmo tempo, ler a rua.
Ler na praia ❤️