Terça-feira, cinco da manhã. Acordo com um pássaro cantando desesperadamente. Estou acostumada a receber visitas de aves na minha janela do décimo andar, mas dessa vez é diferente. O pássaro parece estar dentro do quarto. E mais: escuto ele voando e se debatendo dentro de algum lugar fechado. Saio da cama e inspeciono a janela: nenhum sinal de pássaro, mas o animal continua piando e se debatendo. Descubro que na verdade o passarinho se encontra dentro do ar-condicionado, na parte que fica do lado de fora.
Da janela do outro quarto dava pra ver que o coitado era um sanhaço buscando desesperadamente a saída. Um buraco na tela explica como ele pode ter entrado ali. Mas esta não foi a primeira vez que um pássaro se instala em uma das minhas janelas.
No início de 2020, um casal de bem-te-vis achou que era uma boa ideia fazer um ninho na janela da nossa sala, entre as plantas. Foi repentino: um emaranhado de gravetos e folhas brotou no parapeito e dois bem-te-vis passaram a nos visitar com frequência. Um lado da janela tornou-se inacessível, qualquer movimento e os bichos piavam e batiam as asas ameaçadoramente para nós. Tentamos oferecer sementes, mas não aceitaram. Deixamos quietos. Até que um dia ouvimos piados baixinhos. Pelo vidro, conseguimos enxergar por entre os gravetos, três bebês bem-te-vi minúsculos. Esperamos ansiosamente pelo dia que voariam.
Um a um, os filhotes foram desaparecendo e o ninho emudecendo. Um passante encontrou um caído na frente do nosso prédio e levou para cuidar. Não sabemos o que aconteceu com os outros dois, se aprenderam a voar ou se caíram em queda livre. O ninho foi abandonado, cheio de pulgas. Nos restou limpar os rastros e imaginar o que teria acontecido. Uma tragédia ou apenas o ciclo da vida? Os bem-te-vis pais nunca mais voltaram.
Na pandemia, minha rua normalmente movimentada era um silêncio só. Passei a prestar atenção nos pássaros que visitavam minha janela. O sanhaço tem um canto alongado, com notas agudas cheias de altos e baixos, parece alguém gritando com você “ô ó o auê aí ó!”. Ou ainda: “pe-vo-pe-cê pe-sa-pe-be pe-fa-pe-lar pe-a pe-lín-pe-gua pe-do pe-pê?”.
As andorinhas são as coisas mais lindinhas, arrulham como passarinhos anglófonos fazendo um som de “chirp chirp” e parecem saídas de um desenho animado. Adoram conversar no parapeito do banheiro.
Os bem-te-vi são cheios de si, se acham os donos do pedaço. As fragatas voam alto demais para que eu possa escutá-las, mas são graciosas de se olhar – quando não estão brigando entre si por comida. Os urubus são comadres fofoqueiras, gostam de se empoleirar nas antenas de TV dos prédios altos para nos julgar.
Desde então, me acostumei a acordar com o canto dos pássaros.
De volta ao pássaro preso no ar-condicionado. Minha primeira atitude foi ligar para o serviço de resgate da Guarda Municipal, mas eles logo disseram que só resgatariam o sanhaço se estivesse em local de fácil acesso. Alguém teria que fazer o trabalho de tirar o aparelho de ar-condicionado da parede. No prédio não tinha nenhum ajudante disponível e eu não confiava muito na minha habilidade para isso. Nenhum amigo por perto podia me ajudar. Enquanto pensava em alternativas, duas pessoas sugeriram: por que não tenta os bombeiros?
Achei uma ideia meio ridícula. Fiquei imaginando bombeiros preparados para resgatar pessoas de valas e incêndios desligando na minha cara ao ouvir sobre um passarinho preso num ar-condicionado. Mas, não custava tentar. Eram oito da manhã de um dia sem chuva, liguei para o 193 e fui atendida no primeiro toque. Descrevi o caso e o atendente informou que ia deslocar uma equipe para o meu endereço. Reforcei que o sanhaço estava preso dentro do aparelho, preso à parede de um apartamento no décimo andar… não seria incômodo mesmo? Negativo. A instrução seguinte era manter a linha telefônica desobstruída e aguardar o resgate.
Avisei o porteiro da iminente chegada dos bombeiros para evitar um susto. Cerca de 20 minutos depois, ouvi as sirenes de uma SUV vermelha se aproximando e estacionando na calçada. Morri de vergonha imaginando o que os vizinhos pensariam. Dois agentes uniformizados saltaram do carro e logo tocaram a campainha. Nesse meio tempo, eu tinha liberado espaço no quarto e posicionado a escada para que conseguissem acessar o aparelho sem dificuldades. Indiquei a eles o caminho, mostrei o pássaro em desespero e o resto foi muito rápido. Um dos bombeiros subiu na escada, deu um puxão no aparelho e o sanhaço meio que caiu ou voou para fora pelo buraco; o outro agente o capturou no ar. “Veja, senhora, é um sanhaço!” e para o companheiro de trabalho: “Tira foto!”. Fiz minha foto também.
O bombeiro então verificou se o animal estava ferido e informou que ia fazer a soltura ali mesmo. Abriu bem a janela, jogou o bicho no ar e ele saiu voando em direção à liberdade sem grandes dificuldades. Recolocou o aparelho no lugar e os dois foram embora, sem aceitar o café e a água que ofereci. Pareceu tudo tão fácil.
O silêncio reinou no quarto. Inspecionei o aparelho, tapei o buraco como pude e voltei a trabalhar. Sem visitas de pássaros. Uma sensação familiar de vazio. Me restou esperar por novas visitas.
Recomendações da semana
Para ler 📚
Viver e traduzir, Laura Wittner. Bazar do Tempo. Autora do também maravilhoso Tradução da estrada, da Círculo de Poemas.
Revista Aboio nº 2 – Festa. Conheça a Aboio.
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Daisy Jones and the Six, no Prime Video, inspirado no livro homônimo de Taylor Jenkin Reid.
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a síndrome do ninho vazio lhe bateu à porta (ou, melhor, ao ar-condicionado).
Adorei esta carta e saber que este ser alado ficou livre novamente, Luiza! Também coleciono visitas aladas e seus registros em palavras e imagens por aqui. Um abraço!