Não sei precisar o que me levou a encontrar este terreno baldio naquela noite escura e silenciosa. Por que entre tantos telhados e becos e frestas eu escolhi este espaço. Acho que uma mãe sabe dessas coisas, mesmo que naquele momento eu ainda não me soubesse mãe. O que eu procurava, penso agora com mais clareza, era um pouco de paz. A paz e o sossego que os gatos de rua raramente encontram, sempre disputando território, se esquivando da maldade alheia e dependendo da bondade de estranhos.
O que me trouxe a este terreno abandonado, tomado de entulho e ervas daninhas, com a ocasional presença de ratos, baratas e pardais, portanto, foi algo parecido com esperança. Um sentimento que até então desconhecia.
Pois aqui cheguei e naquela mesma noite, meus filhos vieram ao mundo. Dei a eles o leite magro que meu corpo fraco pôde produzir, mas não parecia suficiente. Eles miavam a noite toda, o tempo todo, suas vozes ecoando pela rua e eu temendo que fôssemos descobertos e usurpados de nossa paz. Felizmente, permanecemos invisíveis aos olhos do mundo e, em poucos meses, quando os dias ficavam mais secos e mais frios, pude ver meus filhotes crescerem.
Com meus bebês maiorzinhos e fortes, pude voltar a caçar. Nosso lar, como eu disse, era tomado de pragas e não passamos fome. Mas às vezes eu precisava me aventurar por sobre os muros e telhados em busca de mais substância para minhas crias. Outras vezes eu só queria mesmo um tempo para mim, lembrar como era ser uma gata sem filhotes, solta no mundo com a noite a me guiar.
Num desses passeios, conheci um gato cor de areia que tomava sol no telhado vizinho. Trocamos longos olhares. O pai de minhas crias, de pelo negro como a noite, nunca mais apareceu – deixou sua herança nas manchas dos meus filhotes, misturado ao meu pelo branco. A vida é mais difícil para os gatos pretos, sabemos. O gato cor de areia seguiu me acompanhando com o olhar, às vezes fazia menção de atravessar o muro que cercava meu refúgio, mas eu o enfrentava e defendia meu espaço com unhas e dentes. Ele nunca se atreveu.
Os meses passavam e a vida era boa. Longas manhãs deitada ao sol na laje inacabada, enquanto um filhote brincava com uma mosca, outro tentava atacar meu rabo, e outros dois exploravam o matagal atrás de ratos e baratas.
Certa noite, me esgueirei por baixo do portão da rua, levando o mais velho comigo. Mostrei como se esconder sob a sombra das árvores e postes e atravessar a rua ligeiro no intervalo dos carros. Foi esse o meu mal. Quis ensinar a liberdade cedo demais aos meus pequenos. Não vi que o mais novo nos seguiu para fora do portão. Quando voltamos da excursão, só vi uma mancha branca e preta no asfalto.
Esse é um conto que escrevi em agosto de 2023 numa aula de escrita criativa do Núcleo de Formação e Expressões Artísticas do SESC Niterói. O exercício, provocado pela Luisa Espindula, era escrever em primeira pessoa com um deslocamento autobiográfico, de outro sujeito. Então escrevi sobre essa gata e seus filhotes, que eu observei durante um tempo considerável na pandemia. Desde quando escutei os miados finos de filhotes na rua até identificar no terreno baldio em frente à minha janela, do décimo andar, a gata e seus quatro ou cinco filhotinhos malhados. Todos os dias acordar, ir à janela, olhar os gatos lá embaixo. Até uma noite ver a gata sair. E no dia seguinte, a mancha no asfalto. E depois, mais nenhum gato.
Penso muito nesses gatos e se era meu dever de cidadã ter denunciado o dono do terreno (o clube vizinho), procurado resgate para a família de gatos. Mas parecia uma vida tão boa, tão protegida da civilização. Me acomodei no lugar de observadora passiva, mera espectadora da natureza e deixei que ela tomasse seu curso. Não sei se hoje faria diferente. O terreno ainda está lá, as árvores cresceram, já não consigo ver a laje onde a gata se refestelava ao sol e os gatinhos perseguiam borboletas. Parece outra vida. E talvez tenha sido.
Telegramas
Sebastião Salgado se foi. Uma grande perda para a fotografia, para o Brasil, para o mundo. Além de um trabalho humanista delicado de retratar e dar voz a povos, culturas, e vida inumana mundo afora, também deixou um legado ambientalista ao replantar mais de dois milhões de árvores da Mata Atlântica. Relembro aqui a vez que assisti O sal da terra.
Hoje saiu mais um poema d’O livro das pedras na Fazia Poesia. Quem ainda não tem o livro pode adquiri-lo no site da Cachalote, na Livraria Martins Fontes, na Janela Livraria e em marketplaces como Magalu e Estante Virtual. Com a autora, ainda demora um pouco. Seis meses de livro publicado e ainda não consegui fazer a sessão de autógrafos, mas há rumores de um lançamento na Flip, em julho.
Enquanto isso, vou participar da Bienal do Livro do Rio pela primeira vez, com o lançamento da coletânea Palavráguas da Editora Arpillera. Participo com dois poemas aquáticos numa publicação artesanal belíssima. Estarei lá no sábado, 14/06, às 17h, e terei também algumas cópias do Amor Recreativo.
De 05 a 08 de junho ocorre a FLIR, Feira do Livro de Resende. Não estarei lá, mas vários livros meus estarão no estande da Revista Lira.
Últimas leituras
Eros o doce-amargo, Anne Carson (não ficção)
A filha primitiva, Vanessa Passos (romance)
Trombando em jeitos, Alex Moura (poesia), o qual tive o privilégio de assinar a orelha
Pré-vendas
O novo livro de poemas da Renata Ettinger, Não cabe nas mãos, pela Mormaço.
Miolo do verbete, plaquete de poemas da
, também pela Mormaço.
Séries e filmes
Homem com H (cinema). Não há homem mais sexy que Jesuíta Barbosa.
Sereias (Netflix). Um desbunde de cenário, um requinte de roteiro, um luxo de elenco.
Pablo e Luisão (Globoplay). A história de origem do melhor comediante brasileiro em atividade, puro suco de Brasil.
Só aumentou minha von de adotar uma gatinha!
Gosto demais de narradores não humanos, sendo gatos então...