Desde que posso me lembrar adoro nadar em piscinas. Embora nunca tenha tido uma piscina própria, fiz natação por toda a infância, o que me permitiu esse contato mais íntimo com a água clorada. Ter amigos e parentes com piscina em casa ou associados a clubes com piscina também foi uma sorte que me acompanhou. Há quase vinte anos meu pai se mudou para um condomínio com piscina e desde então pude experimentar de vez em quando meus dias de madame à beira da piscina ouvindo as conversas curiosas de habitantes da Barra da Tijuca.
Comecei a escrever um texto que se chamava “A felicidade é uma piscina” depois de assistir o filme brasileiro Pérola em outubro passado, na véspera do meu aniversário. Registrei algumas impressões do filme nessa tentativa de resenha apenas recentemente, mas não consegui registrar ainda o sentimento que me tomou naquele dia, não sei se provocado pelo filme, se pela iminente mudança de idade, se pela pessoa que me levou ao cinema. Sei que tive esse pensamento, que a felicidade é uma piscina, e que chorei quando deu meia-noite e fiz 33 anos numa noite fria e molhada de outubro, sentada em uma cadeira de plástico na Cantareira bebendo cerveja com uma pessoa que me conhece tanto que dói e ao mesmo tempo não me sabe nem um pouco.
Nesse último domingo do verão, em que o calor parecia fritar minha pele como torresmo e que eu não conseguia me levar à praia, tudo o que eu queria era uma piscina, uma água fresca e com cheiro de cloro onde eu pudesse mergulhar e sentir meu corpo relaxar e minhas preocupações se dissipando devagar. Como um bloco de gelo derretendo num copo de bebida, mas ao contrário, uma bola de fogo evaporando na água.
A mesma pessoa que me levou para ver o filme da mulher que só queria uma piscina me ofereceu uma tarde na sua piscina, também ela precisando derreter ou marinar suas inquietações numa água fresca por algumas horas. Ironicamente, a água da piscina era fria, fria demais, e sem incidência de sol ou outra coisa para nos aquecer, tudo o que podíamos fazer era tremer de frio falando de coisas aleatórias ou nadar voltas naquela tripa de dez metros em completo silêncio.
Gosto de nadar. Gosto de arrastar meu corpo pelas águas. O nado crawl, essa palavra que eu estranhava na infância, significa literalmente rastejar. Rastejamos na água quando nadamos. E eu rastejei naquela piscina magra e rasa, de frente, de costas e de peito, sentindo o movimento amortecer um pouco aquele frio que mais cedo eu teria louvado. Se a felicidade é uma piscina, é preciso mergulhar. Seja ela funda ou rasa, fria ou quente, grande ou pequena. Não dá para ser feliz só molhando o pezinho.
Enquanto escrevo essa carta sem certeza alguma do que quero dizer ou do que senti naquela piscina ou naquele cinema, chove. Uma chuva alarmada pelos noticiários e autoridades, uma chuva feita para ficar em casa reflexiva ouvindo música e lendo livros e por isso estou reflexiva, escrevendo sobre piscinas, sobre felicidade, tentando descobrir as dimensões dessa piscina que me cabe, como se ela se revelasse aos poucos, conforme a exploro. Mergulho nas coisas que me fazem feliz – a escrita, a leitura, os encontros –, tentando ir cada vez mais fundo, como se fundo fosse melhor, como se a resposta estivesse no fundo, como Corina em as Águas-vivas não sabem de si, e tenho medo de não encontrar nada, tenho medo de não conseguir voltar, tenho medo de me decepcionar.
Me engano: não é de felicidade que estou falando.
A solidão, o tempo todo ela. Como não? Mas nenhuma criatura viva é capaz de suportar a quantidade necessária de solidão para chegar perto de compreender. Elas continuarão buscando, indo mais fundo, enlouquecendo. Mas não entenderão. E não diziam que as profundezas eram vazias? O que haveria para se entender ali? O que haveria para se ver dentro de um vulcão, mesmo depois morto?
Entender nunca foi o mais importante. A urgência sempre foi pelo impulso de preencher aquela solidão, estabelecer um contato, saber-se como apenas um ponto numa complexa rede de vida; mandar um sinal e receber uma resposta, estabelecer um diálogo, ter algo ou alguém a quem se conectar.
As águas-vivas não sabem de si, de
, p. 290.
Recomendações
Para ler📚
Dublinenses, James Joyce
Para ver📽📺
Saudosa Maloca, ficção de Pedro Serrano livremente inspirada nas canções e na vida de Adoniran Barbosa (nos cinemas).
Recados
Comecei o mestrado em Estudos de Literatura na UFF. Uma das disciplinas envolve ler Ulisses, do James Joyce até maio. Desejem-me sorte.
Em breve mais uma sessão de autógrafos de Amor Recreativo em Niterói – e será a última, prometo. Estou abrindo espaço para novos projetos.
Semana que vem não deve ter carta, espero estar comendo ovos de Páscoa.
Esta publicação é gratuita, mas se você gosta do que escrevo e gostaria de me apoiar para além da leitura, pode me pagar um café no pix: luiza.leite.ferreira@gmail.com
eu não sou muito fã de piscinas, raramente entro numa. e jamais em piscinas “públicas”. prefiro o mar, mantendo o devido respeito por sua natureza gigante. talvez seja algum tipo de trauma por ter sido obrigado a fazer natação - esporte que eu odiava - por muitos anos quando era criança. a propósito, boa sorte com ulisses!
que delícia é mergulhar na escrita (e claro, consequentemente, na leitura). obrigada por compartilhar esse lindo texto!