Recortes
Tive uma semana difícil: fui massacrada pelo peso do ordinário. Mas já estou me recompondo. Dessa semana cruel em que não me senti eu-mesma (e ao mesmo tempo fui o mais eu possível), recorto alguns pedaços que vale a pena compartillhar.
Cinema-conforto
Parece que todo mundo – da minha geração, pelo menos – ama os filmes do Studio Ghibli. Meu vizinho Totoro (1988), O serviço de entregas da Kiki (1989) e Ponyo (2008) são alguns preferidos. Dentro da filmografia do estúdio, há uma clara predileção do público em geral pelos filmes do premiado roteirista, diretor e fundador Hayao Miyazaki, e o seu mais recente O menino e a garça é mesmo muito bonito.
Se eu disser que eu e minha amiga não nos cutucamos no cinema algumas vezes pra dizer “ih, me perdi” e “ih, eu também”, estaria mentindo. A essência a gente sempre pega: é a história de um menino que perde a mãe num incêndio em pleno contexto da Segunda Guerra Mundial. Um ano depois ele se muda pro interior com o pai, que já se arranjou com a irmã gêmea da esposa falecida enquanto dirige uma fábrica que constrói aviões para uso na guerra. O menino tem que se adaptar a uma nova realidade familiar enquanto lida com a perda da mãe e com fenômenos estranhos que acontecem nessa antiga mansão. A parte da fantasia eu nem tento explicar. Só apreciei, com a certeza de ter perdido muita coisa. Mas não deixa de ser uma boa experiência. Um quentinho na alma. Vi dublado e gargalhei com algumas traduções, como “você é fraco, te falta ódio”, do famoso meme do Naruto. Recomendo!
Eu confesso que os filmes que mais me agradam do Studio Ghibli são aqueles em que não acontece nada: só vibes. Nessa linha, gostei muito de Sussurros do coração (1995), sobre uma menina que passa o verão todo lendo e escrevendo pra se tornar escritora; Eu posso ouvir o oceano (1993), que é sobre dois rapazes que se apaixonam pela mesma garota no ensino médio; e o mais recente, que assisti na quinta-feira, Memórias de ontem (1991).

Baseado num mangá, o filme narra a história de uma mulher solteira que vive em Tóquio e gosta de passar o verão trabalhando na lavoura da família do cunhado. Entre o trabalho na colheita de açafrão e as conversas com Toshio, a protagonista Taeko relembra sua infância em Tóquio nos anos 60: as dificuldades em matemática, o primeiro crush (e as zoeiras da galera da escola), o tabu da menstruação, os conflitos com as irmãs mais velhas. Memórias de episódios felizes e traumáticos que a moldaram e ela tenta reelaborar na vida adulta enquanto reflete se é realmente feliz, se realizou os sonhos de infância. Quem não se identifica?

Uma lembrança em particular me pareceu fascinante de assistir em 2024: o pai de Taeko traz um abacaxi para casa e ficam todos embasbacados sem a menor ideia de como cortar e comer a fruta exótica. O cultivo de abacaxis no Japão era bem recente. Só no dia seguinte a filha mais velha volta da rua com a solução para o enigma e todos provam o abacaxi pela primeira vez, apenas para se decepcionarem com o sabor azedo da fruta imatura. Nem sempre a realidade corresponde à expectativa.
Viver e traduzir
Terminei de ler o livro Viver e traduzir da poeta e tradutora argentina Laura Wittner, que tive a oportunidade de conhecer na última Flip. O livro é um caderno de anotações sobre o ofício de tradutora. Sublinhei várias frases que servem de mantra e oráculo: “traduzir é pensar na gente” (p. 13), “traduzir é ficar colada nas costas de alguém” (p. 16), “o desejo é essencial para traduzir” (p. 27). Essa última me pegou. Explica porque tenho tido dificuldade com algumas traduções poéticas que tenho tentado.
Há um abismo entre as traduções que faço a trabalho (técnicas) e as que me proponho a fazer para estudo (literárias). A tradução técnica é muito desafiadora, claro: há muita pesquisa envolvida, teminologias específicas para desvendar. Mas a linguagem deve ser o mais direta possível e sinto prazer em transformar um texto macarrônico em português em algo límpido e transparente em inglês, que transmite exatamente a mesma mensagem. A tradução técnica é prática, eficiente, direta ao ponto.
A tradução literária não é tão simples. Há motivos e motivos para o autor original ter formulado uma frase de certa maneira. Alguns são mais óbvios, outros, nem tanto. Nenhum desses motivos pode ser ignorado. É preciso olhar por cima das costas do autor e enxergar o que ele escreveu, como escreveu, por que escreveu.
Traduzir um poema é ficar sempre parada no meio de dois idiomas e ver o que é possível fazer. O poema original diz algo de certa maneira, canta, pisca o olho, fala de coisas que talvez não existam ou que nunca existiram na língua para a qual se quer traduzir. Se recortássemos esse poema numa cartolina e o apoiássemos contra o recorte de sua tradução, sobraria por um lado, faltaria pelo outro. […] E, se quiséssemos que a tradução produzisse uma música idêntica à da original, ficaríamos muito frustrados mesmo: o inglês canta de uma maneira, eu canto de outra quando tento imitá-la.
Laura Wittner, p. 72.
Traduzir um poema não é coisa trivial. As correspondências podem até ser sussurradas, como Laura sugere, mas não bastam. Pequei numa tradução. Escolhi o caminho mais fácil para manter a métrica e a rima e deixei de lado a essência, a imagem principal, a rima rica. Foi uma escolha, a tradução é feita de escolhas. Mas não foi a escolha certa. É preciso voltar ao início. Dormir com o poema, sonhar o poema. Há tradutores que se debruçam por anos sobre um autor. Um dia claramente não foi suficiente na minha empreitada. “Traduzir é se embrenhar dentro de alguém”, diz Laura (p. 55). Preciso me embrenhar dentro da minha autora.
Telegramas
Meu poema “Certeza”, do Amor Recreativo, foi publicado na Fazia Poesia.
Paula Maria fala sobre crescer e mudar em O gosto do caqui.
A revista Contos de Samsara está com campanha de financiamento coletivo para produção de suas edições físicas. Eu participo da edição nº 11, Asas. Apoie a campanha aqui.
Vi a primeira temporada da série Novela no Prime Video. Com Monica Iozzi e Miguel Falabella e produção do Porta dos Fundos. Pense em Zoando na TV encontra A rosa púrpura do Cairo. Ainda não sei se gostei.
Agenda📅
Sábado, 02/03, das 10h às 18h acontece a Lavradio Literário, um braço da Feira do Lavradio na Praça Emilinha Borba (Rua do Lavradio, 27), na Lapa, Rio de Janeiro. O Coletivo Escreviventes vai ter uma banca na feira com livros de suas autoras à venda, incluindo meus Amor Recreativo e Fruteira. Às 14h, faremos um sarau. Quem estiver de bobeira no Rio, não deixe de nos prestigiar!
você precisa ler o texto: A tarefa do tradutor de BWalter Benjamin! Revolucionou minha vida na tradução!
ainda não vi o filme novo do miyazaki, mas sempre crio muitas expectativas, porque os anteriores são verdadeiras pérolas. ele tem um lirismo comovente!