Essa semana meu tempo está limitado, feriado vindo aí, vou viajar para ver a família. Ultimamente meu tempo parece estar sempre limitado, ou estou trabalhando adoidada para cumprir um prazo apertado ou estou entrando e saindo de aulas ou estou fazendo atividades das aulas ou estou encontrando pessoas ou pagando boletos. Sei lá, talvez eu seja ruim de agenda e arrumar tempo pra de fato escrever seja mais difícil do que pensar sobre o que escrever. O tempo é uma obsessão, o tempo é uma lasanha, tempo, tempo, tempo, tempo. Mas hoje não tenho tempo pra falar de tempo.
Começo a escrever essa carta na terça-feira depois de um longo dia trabalhando numa tradução. Caso você não saiba, minha principal ocupação é a de tradutora/revisora. Meu trabalho é trabalhar o texto de outras pessoas. A minha própria escrita entra nas brechas; está sempre lá, mas não tem horário pra cumprir – trabalha quando quer. Não raro ela invade meu espaço de descanso, mesmo sendo de certa forma um trabalho. Ou deveria ser um lazer? Difícil equacionar o espaço que a escrita ocupa na minha vida. Às vezes parece coadjuvante, mas no fundo mesmo é protagonista: está em tudo que eu faço, até na rede de fotos, até no e-mail de trabalho, até nos meus sonhos. Este poema só me deixou dormir quando o botei no papel:
Você pegou a minha mão
para atravessar a rua
olhou para os dois lados
e corremos pela noite escura
ao chegar do outro lado
tentou me soltar
não deixei
Como alguém que escreve, eu leio muito. Movimento natural: começamos a nos encantar pela escrita através da leitura. Quando criança eu vivia rodeada de livros e não me incomodava de ler mais de uma vez os meus preferidos. Na adolescência, ler era quase uma obsessão, estava sempre pegando livros na biblioteca da escola e lendo dentro da sala em vez de prestar atenção na aula de química (talvez por isso eu tenha ficado em tantas recuperações de química). Na adolescência eu também escrevia muito, fanfics enormes de 20 capítulos escritas madrugada adentro no meio da semana, para desespero da minha mãe. Também para desespero da minha mãe, sigo sendo uma leitora obsessiva, assinando e participando de clubes de leitura, trazendo uma pilha de livros pra casa a cada evento literário e ganhando livros de aniversário e acumulando mais livros do que serei capaz de ler em vida – e acumulando uma grande ansiedade em relação a isso.
Entre tantas leituras, leio também sobre escrever. Uma escritora lendo escritores escrevendo sobre escrever. E um dos principais conselhos dados por escritores que escrevem sobre escrever é: leiam. Para escrever, é preciso ler. De volta ao início.
Hoje (10/10) postei no meu Instagram literário sobre os conselhos de escrita que aprendi com Teresa Cárdenas na oficina do Sesc que mencionei numa edição passada (em que eu também falava de tempo) e lembrei que o Substack tem esse recurso de Notes que é tipo um twitter que eu já desaprendi a usar. Postei o link do texto lá e em vez de fechar esse ciclo de escreve-posta-divulga e voltar pra minha tradução, eu resolvi começar outro texto e por que não fazer uma série de textos sobre o que eu aprendo com escritores, seja ouvindo-os em palestras ou lendo seus livros e conselhos? Enquanto me dedicava a essa nova empreitada com muito afinco para não correr o risco de o projeto ficar só na minha cabeça, o Substack recomendou minha nota ao
que se identificou com os conselhos do texto e recompartilhou, sem nem me conhecer. Talvez escrever sobre escritores que falam sobre escrever seja uma boa ideia, mesmo.Mais tarde durante uma reunião do Coletivo Escreviventes para articular nossa presença na Flip, surgiu um comentário sobre a escrita como não-sustento ser um ato de rebeldia. De fato. Toda vez que escrevo algo que não me garante qualquer retorno financeiro é como se estivesse me rebelando contra o sistema que só recompensa o que é útil, o que “tem valor”. Uma tradução de artigo acadêmico a ser publicado numa revista internacional tem “valor”; uma revisão de um texto institucional de uma empresa tem “valor”. Um texto publicado na internet sem que ninguém o tenha encomendado… tem “valor”? Um poema que escrevo para congelar uma sensação efêmera… tem “valor”?
Batom
Tive um sonho tão bom
Abria um envelope rosa
que continha:O perfume da pele
o sabor da boca molhada
uma carícia na bochecha
um afago na almaE um doce sorriso nos lábios
que agora uso como batom– poema do livro “É na cacofonia que eu me escuto”, nascido a partir de um sonho
Pensar em valor me faz pensar em preço e como a maioria das pessoas que não lê obsessivamente justifica não comprar livros porque “livro é caro”. Não, livro não é caro. É mais barato que um rodízio de japonês ou que um show de festival e tantas outras coisas com que as pessoas não pensam duas vezes em gastar seu rico dinheirinho. Mas nossa, 50 reais num livro que te entretém por horas é “muito caro”.
Hoje só se fala em monetização. Monetizar opiniões, monetizar arte, monetizar o cotidiano. A Tay Gregório escreveu sobre o erro que é pensar que virar criador de conteúdo e monetizar a vida é o futuro. Apoio seu texto com a culpa de quem passou a manhã caçando ofertas de produtos na Amazon para ganhar trocados de comissão. Sou uma escritora ou uma aspirante a influencer digital, ora bolas? Mas as migalhas são bem vindas, se for comprar qualquer coisa lá, considere usar meu link de associada pra me fortalecer.
Virginia Woolf disse em 1928 que uma mulher com 500 libras por ano e um teto todo seu era capaz de escrever grandes coisas. Gloria Anzaldua dispensa o quarto só para si, diz para escrevermos no ônibus, no metrô, de pé na cozinha esperando a água ferver, na fila do pão, onde for. Mas acho que ela concordaria com as 500 libras por ano – 40.000 libras na cotação de hoje, o que em reais dá a bagatela de cerca de 250.000. Se com um salário-mínimo eu escrevi 3 livros de poesia, com 20 mil por mês eu seria capaz de escrever alguns romances. Uma mulher pode sonhar.
Divago. A escrita é uma torneirinha que se abre e começa a jorrar até não mais parar. Às vezes começo a escrever sem saber onde vou chegar. Mas, se nos afastarmos do sentido utilitário da escrita, será que ela precisa chegar a algum lugar? Pode a escrita ser uma grande divagação, uma grande experimentação sem objetivo claro? Clarice Lispector garante que sim, e Água Viva é prova disso. Um grande fluxo de consciência que jorra sem parar. Me lembro de ler o livro mas não lembro o que apreendi do livro. Foi como ler uma vertigem. Eu li o livro ou o livro me leu? A escrita também pode ser uma pergunta.
Agualuz, romance da minha amiga Cecília Rogers também traz uma escrita em fluxo. Um acontecimento marcante na vida da personagem principal narrado logo nas primeiras páginas domina todas as suas vivências, como água infiltrada que vaza pelas paredes. Sonhos e memórias se misturam ao relato de Luzia e não sabemos dizer o que é real e o que é ficção, a única certeza é da grande ferida que a perda sofrida deixou nessa menina-mulher.
Termino de escrever este texto nas primeiras horas de quinta-feira (12/10). Mala semiarrumada, trabalhos em dia. Publiquei um texto novo no blog sobre o que aprendi sobre escrita com Stephen King. Mais cedo, escrevi e reescrevi poemas (o primeiro citado nessa carta é de uma nova leva). As artes que ilustram essa carta foram feitas para rechear meu perfil literário, mas acabaram cabendo aqui também.
Quando sentei para escrever esse texto, não sabia onde ia chegar. Nem sei se cheguei a algum lugar. Mas escrita também é jornada.
O que eu li essa semana 📚
Mata teu pai, Grace Passô (teatro). Li para uma aula de literatura de autoria feminina.
Agualuz, Cecília Rogers
Oi achei muito legal seu texto. Amei sua poesia batom. Obrigado por compartilhar.
Eu amei! Obrigada por esse texto. Acho que estava precisando de algo assim pra me sentir mais livre pra escrever. bjks