Revirar o passado às vezes me embrulha o estômago. É um misto de saudade e arrependimento. Saudade do que passou, arrependimento do que fiz ou não fiz. Como uma libriana típica, estou sempre dividida entre A ou B, isto ou aquilo. Um passo importante para o meu crescimento nesse aspecto talvez tenha sido quando decidi, em algum momento dos meus vinte anos, que era preferível me arrepender de fazer algo do que de não fazer, especialmente em se tratando de experiências novas. Como a resposta de Holly Golightly a um pedido de casamento em Bonequinha de luxo: “é claro que eu vou me casar com você. Eu nunca me casei antes”.
Essa reflexão é despertada pelo reencontro com minha agenda de 2009. Uma agenda linda e frufru, com páginas rosas, lilases e azuis com várias Charmy Kitty (uma variação da Hello Kitty) diferentes. Costumo guardar meus diários, mas quase não escrevo nas agendas, então acabo rasgando as páginas com informações pessoais e jogando tudo fora depois. Mas essa era tão bonita que deixei guardada no armário de tralhas pra um dia recortar e usar os desenhos em colagens. Enquanto procurava outra coisa no armário de tralhas (que acabei não encontrando), me deparei com a agenda e resolvi abri-la só para ver o que tinha ali. Para minha surpresa, encontrei mais do que listas de compromissos.
Dois mil e nove foi meu primeiro ano de faculdade de jornalismo, meu primeiro ano como universitária, desbravando um mundo de experiências novas e excitantes. Me lembro de ter muitas expectativas sobre esse ano e muitos medos também. Os primeiros meses do ano, antes do período de aulas começar, são quase como diários, relatando dia a dia o que eu fiz naquelas longas férias: passeios com o amor da vida até então, viagens para visitar a família, um passeio por Niterói com turistas do interior no dia mais quente do ano que é lembrado até hoje pelos envolvidos, muitas e muitas idas ao cinema, um recorrente sentimento de vazio existencial. Viro as páginas como se lesse um romance, imaginando algumas cenas esquecidas, lembrando de outras, acompanhando a narrativa como quem relê um livro favorito depois de muito tempo, com olhos frescos e atentos para pescar pistas que podem ter passado batido numa primeira leitura, quer dizer, vivência.
Com o início das aulas, os relatos pessoais se misturam às tarefas da faculdade, muitas leituras e trabalhos, exposições, reuniões com os amigos, um absoluto desprezo pelas aulas de filosofia, muitas consultas médicas. Algumas anotações são engraçadas aos olhos de um leitor desavisado: “não haverá realidade”. Um verso? Uma proclamação filosófica? Não, apenas um lembrete de que eu não teria aula de “Realidade socioeconômica e política brasileira” naquele dia.
A cada mês a agenda traz seções como “sonhos secretos”, “músicas preferidas” e “amores secretos” em que as respostas que encontro são tão precisas em 2024 quanto eram em 2009, uma verdadeira surpresa.
O segundo semestre traz reviravoltas na vida amorosa que são evidenciadas apenas por um coração riscado com um X entre as iniciais dos amantes, uma verdadeira sacanagem com qualquer fofoqueiro que se prestasse a ler essas memórias. Novos personagens surgem na trama, identificados apenas por letras, e a vida social se torna mais intensa, muitas festas por mês e alguns personagens que já tinham sido cortados fazem aparições-surpresa só para confundir tudo. O último mês do ano tem pouquíssimas anotações, exceto pelos desejos para 2010 e por um espaço reservado para fotos que preenchi com alguns desenhos.
A cada página virada revivo as emoções de cada dia, cada lembrança, o que me toma um tempo e uma energia que eu devia estar gastando em outra coisa – como em 2009, também estou vivendo uma nova fase acadêmica cheia de exigências. Qual o sentido de reviver o passado, me pergunto sempre que tenho esses ímpetos nostálgicos. Não repetir os mesmos erros é a primeira resposta que me ocorre, mas não posso dizer que tenha aprendido muito nesse aspecto.
Vidas Passadas
Inevitável não pensar no filme de Celine Song ao revisitar esse recorte temporal. O doce-amargo desejo de saber o que teria sido, como poderia ter sido, caso tivesse tomado um e não outro caminho. Um inútil e cruel exercício que coloca em xeque todas as escolhas feitas a partir das não feitas, como se tudo o que fizemos tivesse sido um grande erro e nossa vida de verdade fosse aquela que não vivemos. Quem teríamos sido em vidas passadas? Hoje em dia há quem fale em multiversos e vidas paralelas e acredite piamente que há uma outra versão da sua vida correndo ao lado da sua em que tudo que você sonhar é possível realizar e basta um ritual meditativo duvidoso para alternar entre a realidade atual e a desejada – um tal de shifting, pesquise por sua conta e risco. Mas não caio nessa ilusão.
Imaginar o que não foi é um exercício válido para a ficção, e muito do que penso escrever em prosa passa por essas realidades alternativas ficcionalizadas – que um dia chamei de “fanfics de mim mesma” numa aula de escrita criativa, para confusão da professora. Mas ainda assim, ficção.
Talvez o que mais doa nesse exercício de revirar o passado não seja encarar o que poderia ter sido, mas sim quem fomos. Vivo uma espécie de luto em constatar que aquela Luiza de 15 anos atrás não existe mais daquela forma, embora ela sempre vá existir em algum pedaço das minhas versões subsequentes. Esta Luiza de 33 anos e 8 meses é uma amálgama de 33 versões diferentes em constante evolução – mesmo que às vezes me sinta dando passos para trás. No fim das contas, a única realidade que temos é esta; este presente; e, para todos os efeitos, somos a melhor versão de nós mesmos que podemos ser.
Vestígios
Como disse, tenho o hábito de guardar meus diários e até meus cadernos de estudo. Com muito custo fui me desfazendo dos cadernos de escola ao longo do anos, mas os da faculdade ainda estão por aqui, sob a desculpa de que ainda posso precisar consultar esses temas. Mas o meu apego está mesmo na palavra escrita, nos rastros de memória que esses documentos carregam. Arquivista de mim mesma, tento guardar tudo o que escrevo a mão como forma de me guardar para uma posteridade na vã ficção de me sentir importante, como se um dia minha vida valesse tanto aos olhos da História que fizesse sentido percorrer esses registros. Um medo de desaparecer, como é nosso destino mortal.
lembrar que o propósito de existir é desaparecer.
Laura Liuzzi, Poema do desaparecimento, p.10
Ao mesmo tempo penso no desperdício de espaço em guardar pilhas e pilhas de papel, na tarefa ingrata que terão meus descendentes (se houver algum) em dispor de todo esse acúmulo de memórias que só fazem sentido para mim. Há quem defenda que certos registros devem ser queimados, exorcizados de seu conteúdo sentimental para liberar espaço na gaveta e no coração. Um destino mais apropriado para essa agenda antiga que há 14 anos ocupa um espaço na minha estante que não lhe cabe mais, talvez. Ou talvez eu só precise lhe atribuir nova função.
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Recomendações
Para ler📚
Poema do desaparecimento, Laura Liuzzi. Círculo de Poemas.
Como se fosse a casa: uma correspondência, Ana Martins Marques e Eduardo Jorge. Editora Relicário.
Cardumes de borboletas: quatro poetas brasileiras do século XIX, Ana Rüsche e Lubi Prates (orgs.). Círculo de Poemas.
Para ver📽📺
Uma ideia de você, no Prime. Anne Hathaway interpreta uma mãe divorciada que vive um romance arrebatador com um jovem cantor da boy band preferida da flha adolescente. Adaptação do livro homônimo de Robinne Lee.
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eu sou muito desapegado em relação aos objetos físicos; guardo pouquíssimas coisas, em geral, apenas itens de decoração (quando ainda combinam com quem sou). o mais próximo que chego do “eu do passado” é relendo textos escritos e publicados em blogs antigos, mas é difícil separar neles o que era realidade e o que era ficção. mas, pensando bem, o que é a memória se não uma espécie de ficcionalização do nosso passado?
Prefiro minhas agendas aos meus diários. Os diários são tao intensos e ao mesmo tempo eu noa conseguia manter uma cronologia. E a minha agenda era mais cheia de vida. Repleta da realidade (que afinal existe ?) e tédio, pensamentos, poemas... Fiquei triste de não ter minhas agendas aqui para pode lê-las !