Esta é a segunda edição de Correspondência, em que eu escrevo a partir de um texto enviado por uma pessoa amiga. Na edição de hoje, um diálogo com . Nascida em Poços de Caldas, mas vivendo em Marselha, França, há seis anos, Samantha é escritora de poesia e fantasia e especialista em criatividade. Ela ajuda escritores a publicarem através de oficinas e serviços editorias em português e francês. É editora da revista literária francesa Oito ou 80 e da revista Frais, onde publica os textos dos participantes de suas oficinas para que nunca mais fiquem na gaveta ganhando poeira. Ela também escreve no substack reflexões sobre processos criativos e está no Instagram : @samanthachuva
Estou lendo um livro de Natal, típico do Natal do hemisfério norte, cheio de neve e mais neve e, claro, mais neve. Bom, era previsível, visto que o título chama “Deixe a Neve Cair”. Comecei a ler para me inspirar para meu livro que também se passa no Natal, mas no Brasil. Ou seja, sol, mais sol e mais sol. Me pergunto se deveria chamá-lo Deixe o Sol Brilhar....
Enfim. Digressões à parte. O que é interessante sobre esse livro é que ele traz três contos de Natal que se passam na mesma noite. Cada conto foi escrito por um escritor diferente, que não continua a história, mas aborda um pedaço dessa grande nevasca, utilizando personagens e fatos citados nos outros contos. O livro é um diálogo. Entre escritores para os leitores.
E acho que é o que estamos tentando fazer aqui. Conversar entre nós, sob os olhos atentos dos leitores. Isso tudo me fez pensar que a escrita é um diálogo, entre livros, entre histórias, entre referências. Entre o que o outro nos faz pensar na nossa caixinha mental e como digerimos e regurgitamos isso, no nosso próprio vômito de palavras e experiências (desculpe pelas analogias, mas pense meu vômito como um líquido rosa com gosto de chiclete e confeitos coloridos, um vômito de unicórnio que espero que te dê vontade de continuar consumindo).
Em contrapartida do diálogo, há o silêncio. O silêncio que é necessário para ouvir o interior e criar. O silêncio necessário para ler. O silêncio necessário para escrever.
A escrita é feita de silêncio e diálogo e diálogo e silêncio. E não se engane, um monólogo, ainda é um diálogo (do desejo desesperador de se fazer escutar pelo outro ou por si mesmo).
Eu não sei como terminar esse texto, que é um mono-dia-logo. Então deixo aqui meu silêncio na expectativa que ele gere uma resposta em algum lugar.
E um poema que fala de abelhas, que veio de uma curta proposta de ficar cinco minutos em silêncio. Essa ponte entre a última carta e talvez essa aqui:
Abelhas zunem no meu cérebro, fazendo do meu crânio colmeia. Elas correm apresadas entre as estantes, recolhendo, brigando, falando. Um falatório que escorre em mel aguado e açucarado. Mel daqueles que colam os dedos, fazem os pensamentos ficarem ali presos no parois. Sinalizações de painéis que gritam pegue a direita, faz assim, não assado. Não entendo todas as palavras que dizem. são tantas, num burburinho estrondoso que me desconcentra. Luz, me deixo navegar pelas ondas calmas do branco pálido que me sequestra desse zum-zum-zum tonteante. Sou abduzida para um planeta branco feito de ar e calma. Um lago transparente me recebe imóvel como um espelho. No reflexo apenas fumaça. Meu ego não existe aqui. Mergulho, me abandonando nessa água de esquecimento e prazer, me deixando flutuar nos braços leves que me embalam para dentro de mim mesma. Ar entra, ar sai. Ar entra, ar sai. Ar. AAAArrrrr, Arrrrrggghhh, Arggghhheeeesshasdjsjudehlsdjfsluhrfas´d. Maldita! Me picou!
O inverno finalmente chegou por aqui depois de um longo veranico. Finalmente um clima que dá pra usar meia-calça e bota, botar um cachecol, ouvir a Adriana Calcanhoto cantar que “o inverno no Leblon é quase glacial” e fazer sentido, mesmo que eu não esteja no Leblon. Pelo menos até a próxima onda de calor.
Penso nessa nevasca fictícia que Samantha está lendo e lembro de uma nevasca de verdade que enfrentei no Canadá e que daria uma ótima história pra contar no programa do Porchat. Penso nisso toda vez que assisto ao programa, mas nunca envio a história, nem mesmo escrevo em algum lugar como um blog onde outras pessoas podem lê-la. Estaria eu recusando um diálogo, impedindo outras pessoas de gargalharem com essa história que tem mais de dez anos? O que me leva a compartilhar um poema imperfeito numa rede social e manter reservada uma anedota pessoal? Por mais que um diálogo envolva uma partilha, o que é ou não compartilhado ainda é critério do enunciador.
Samantha, a convidada de hoje desta correspondência, gosta de Natal e de datas festivas. Ano passado fizemos uma live de Halloween lendo textos temáticos. Ela na França, eu, no Brasil. Separadas por um Oceano Atlântico, uma linha do Equador, quase dez anos sem contato, mas unidas pelo amor à escrita e aos livros. É curioso como a pandemia e o pós-pandemia me reuniram com tantas pessoas do meu passado.
Ao mesmo tempo que sou grata por esses reencontros, sinto uma espécie de saudade daquilo que a gente não viveu. Como foram esses dez anos pra você? Por mais que a gente conte tudo o que viveu uma à outra, será uma narrativa ficcional, alterada pelo filtro da curadoria. Há tanta coisa que não sabemos uma da outra e já nem cabe contar. Mesmo assim, seguimos em frente, unidas por uma das primeiras coisas que descobrimos ter em comum na faculdade de jornalismo: a escrita.
Entretanto, não é fácil escrever esse texto. Penso em todas as direções que poderia seguir com ele: uma experiência com neve ou uma anedota de Natal brasileiro, um relato das minhas leituras ou do meu atual projeto de escrita, um poema sobre abelhas. Quero e não quero escrever sobre essas coisas. Respiro fundo. Me apego ao fio do diálogo.
Gosto dessa ideia da escrita ser feita de silêncio e diálogo. Quando comecei a fazer oficinas de poesia, me diziam para buscar o silêncio, traduzir o silêncio. Então eu disse que não tinha silêncio na minha poesia, que era na cacofonia que eu me escutava e pronto, fiz disso um livro. Mas Samantha traz o silêncio acompanhado do diálogo. Mono-dia-logo. Um equilíbrio entre pausas e falas. Narrações e diálogos. Contemplação e ação. Faz sentido. Todo silêncio espera uma resposta e toda resposta precisa de um silêncio pra ser digerida. Sendo que alguns silêncios são mais longos que outros.
Toda escrita de si tem uma dose de ficção. Todo diálogo segue alguma curadoria. Nenhuma conversa é puramente espontânea. Ou será que é?
Tem um livro da Sally Rooney de que me lembro agora ao escrever esse texto. Belo mundo, onde você está conta a história de quatro pessoas, duas amigas e os dois homens com quem elas se relacionam, e o narrador alterna os pontos de vista entre os quatro personagens ao mesmo tempo que alterna as narrativas em terceira pessoa com narrativas em primeira pessoa das mulheres trocando e-mails sobre seus cotidianos, trabalho e família, sonhos e medos, política e história, e às vezes sobre os homens.
Nesse diálogo de amigas de longa data inicialmente separadas por uma longa distância, há muitos cortes. Coisas que sabemos que aconteceu a uma no capítulo anterior não são imediatamente relatadas à outra na carta do capítulo seguinte. É interessante testemunhar a inconfiabilidade dessas narradoras, o que escolhem narrar, como escolhem narrar, por que escolhem narrar. Muito do meu incômodo com a história tinha a ver com o que elas não contavam uma para a outra, o que deixava escancarada a lacuna que havia entre as duas, bem maior que o oceano que as separou. Como leitora, eu tinha certeza de que se elas escrevessem o que sentiam, todos os problemas se resolveriam. Mas isso não acontece – como muitas situações da vida real – e os problemas acabam explodindo numa discussão. Nem tudo se resolve com diálogo, ao que parece.
*
Talvez o que eu estranhe nessa comunicação que não é bem uma carta é justamente o fato de não ser uma carta. Meu texto é uma resposta ao texto de Samantha, mas será que já não é outra coisa?
Talvez eu devesse ter começado com:
Querida Samantha,
Obrigada por aceitar meu convite para escrever esse texto em diálogo...
E esta sim teria sido minha primeira carta para você.
Leia a Correspondência #1:
Recomendações
Para ler📚
O portal Fazia Poesia publicou esse texto em que falo da minha relação com a poesia, foi bem legal de escrever.
Teve também um poema do Amor Recreativo por lá.
Chegou aqui em casa pela parceria com a
o romance de estreia do Michael Maia Entre a vida e a morte há vários documentos, sobre um futuro distópico onde uma morte digna e controlável facilitada por um narcótico é direito de todos – desde que o governo aprove a sua solicitação. Ansiosa pelo fim do semestre letivo para voltar à me dedicar às leituras de ficção.
Para ver📽📺
Amor ao primeiro beijo, na Netflix. Uma comédia romântica espanhola sobre um editor quase falido que vê o futuro dos seus relacionamentos no primeiro beijo.
Por recomendação do convidado da última correspondência, assisti Dias Selvagens e Amor à flor da pele do Wong Kar Wai. O próximo da lista pra completar a trilogia é 2046.
Divertidamente 2, no cinema.
Agenda📅
O próximo encontro da Casa das Poetas acontece no dia 24/07 às 20h e será sobre o livro Caminhos curtos para caracóis da querida
. Para participar basta preencher esse formulário aqui para receber o link da reunião no dia.Esta publicação é gratuita, mas se você gosta do que escrevo e gostaria de me apoiar para além da leitura, pode me pagar um café no pix: luiza.leite.ferreira@gmail.com
De fato me perguntei se o melhor não teria sido começar uma carta diretamente para você, mas algo no formato de carta compartilhada inibe essa fórmula. Mas quão poético é escrever uma carta para alguém em uma newsletter que se propõe a escrever cartas para ninguém? Acho que isso fala um pouco do processo da escrita em si. Escrevemos para um outro invisível, e quando nos adressamos à alguém, ainda é escrita?
No mestrado de escrita criativa aprendi o termo bioficção. Ou biografia + ficção. Esse termo define um tipo específico de escrita, a das biografias ficcionadas, ou textos inspirados de pessoas reais que, ao invés de buscar o relato realístico do fato, ficciona. Oras, mas não seriam todos os textos ficcionais? Em todo texto há, de fato uma parte de ficcionalização, romantização, deturpação. Uma história pode ser contata de infinitas maneiras e é por isso que a literatura (e as histórias) continua viva.
Mas o interessante é que não é preciso contar tudo para se ter uma história. E a nossa se cruzou em vários momentos e mesmo sem saber cada detalhe (afinal quem sabe cada detalhe de sua própria vida, não é mesmo), ainda assim, somos narrativas (espécies fabuladoras, como diria Nancy Houston). Somos conjuntos de histórias que se cruzam com outras histórias, como no livro que eu li, e no livro que você citou. Fragmentos compartilhados, conversados, silenciados, diálogos do que conseguimos perceber de nossa existência.
E talvez nesse não falar, acabamos falando muito mais. É no silêncio que nos percebemos e na escrita que nos sentimos. Ou algo assim.
E assim, sem querer, te faço também uma carta em comentário. Se pode carta pública em post, deve poder carta pública em comentário. Espero.
os silêncios são importantes para valorizar o som. e vice-versa.